17 de janeiro de 2019

ANTEPASSADOS E DESCENDENTES


        Não entendo a importância que algumas pessoas dão às chamadas ligações de sangue. Não consigo perceber qual é a graça da ficar fuçando minha árvore genealógica para descobrir de onde vieram e quem foram meus antepassados. Tenho certeza absoluta de que se fizer isso vou descobrir pessoas comuns, pessoas escrotas e pessoas decididamente abomináveis, tenho certeza de que é isso que tem na árvore genealógica de todo mundo. Por que procurar esse tipo de coisa? Eu, decididamente, não quero saber quantos estupradores agiram durante quanto tempo e quantas vezes até chegar à coincidência de meu pai encontrar minha mãe e eu nascer. Será mesmo que alguém acha que não vai encontrar estupradores em sua árvore genealógica? Tudo bem, filho, você pode não encontrar, mas não porque eles não existiram e sim porque há falta de dados. Eu não quero saber essas coisas!


          “Mas você pode descobrir um nobre!” E daí? Quem fica orgulhoso só porque descobriu que tem um ou mais nobres na sua árvore genealógica, na minha opinião, tem muita chance de ser a pessoa escrota da árvore genealógica de alguém no futuro, se tiver descendentes! Quem disse que um nobre não pode ser justamente a pessoa mais abominável da árvore genealógica de alguém? Para mim a chance de ser assim é muito grande. E, mesmo que você descubra que um casal antepassado seu foi o rei e a rainha mais humanos e mais justos do melhor dos reinos de contos de fadas, o que isso faz de você? Nada! Você não é nem o rei nem a rainha cujos nomes aparecem em uma folhinha da sua árvore! Você é você! Só isso ou tudo isso, independente de quantos reis e rainhas e de quantos estupradores tenham trepado para que você nascesse!


Durante toda a minha vida, em todos os lugares em que vivi, em todos os grupos que encontrei e dos quais fiz parte, sempre houve pessoas das quais gostei muito, pessoas que me foram indiferentes e pessoas das quais não gostei tanto assim. Um desses grupos dos quais estou falando se chama “minha família”, e acho que é a mesma coisa com todo mundo. É normal. Certo que a proporção pode variar, você dar uma sorte “duca” e fazer parte de um grupo no qual não tem gente escrota. Que bom! Mas isso não é regra, e você pode simplesmente não ter percebido a pessoa escrota do grupo, ou pior, você pode ser essa pessoa! 


Pessoas são assim: algumas são maravilhosas, algumas são legais, algumas são absolutamente sem tempero, algumas são desagradáveis, algumas são escrotas, algumas são tremendamente escrotas e algumas são decididamente abomináveis! E não esqueça de que essa escala de classificação que você percebe em um grupo, geralmente e na maioria das vezes, é meramente sua opinião e dificilmente você vai perceber em que ponto dela você está. Aliás, quanto a mim, sempre tenho em mente que meu cérebro é um tremendo trapaceiro e está o tempo todo tentando me convencer de que estou na ponta do “pessoas maravilhosas” mas isso provavelmente não é verdade. Eu não sou besta de acreditar no meu cérebro quanto a isso!


Bem, se é isso o que acontece em todos os grupos, por que cargas d’água na sua árvore genealógica vai ser diferente? E o que isso tem a ver com você? Quanto a mim não vejo nenhum sentido, nenhuma necessidade, nenhum ganho, nenhuma importância nesse tipo de pesquisa. Pelo contrário, eu prefiro não saber! Não quero saber o nome do filho da puta que estuprou minha tetravó e que deixou um rastro enorme dos seus genes nojentos no meu sangue! Não quero saber o nome do assassino ou da assassina, do escravocrata, do pedófilo, do cara ou da mulher que teve frenesi de gozo assistindo a queima de uma “bruxa” ou o apedrejamento de uma adúltera. Eu não quero saber essas coisas! E, pior, eu sei que encontraria isso se procurasse e se pudesse ver todo o caminho de sangue e esperma que me gerou. O meu consolo e prazer é saber que não tenho nada a ver com isso, é saber que o descendente de um serial killer pode ser uma pessoa decentíssima e o descendente de um santo pode ser um serial killer.


E quanto a descendentes o raciocínio não é muito diferente. Se a raça humana durar muito tempo, é possível que serei parte da árvore genealógica de alguém, mas e daí? Que importância tem isso para mim? Eu estarei morta! Não entendo a preocupação que algumas pessoas têm em ter filhos e netos com o objetivo de deixar descendentes. Meu pai uma vez manifestou essa preocupação, ele me disse que achava importante que o sangue dele perdurasse muito além dele, eu não entendi qual a importância disso quando ele falou e eu era pouco mais que uma criança e não entendo a importância disso hoje, quando vejo uma ou outra pessoa manifestando essa mesma ideia. Se tive descendente ou não, isso não vai importar em nada para a minha vida depois que eu não existir, e se tiver uma linha enorme de descendentes ao longo de séculos no futuro, sei que essa linha seguirá a mesma regra dos antepassados, terá gente de todo o tipo, inclusive gente muitíssimo escrota e gente absolutamente abominável. E eu não tô nem aí pra isso porque não vai me afetar!


Acho que o meu caráter não depende de nenhuma pessoa que viveu centenas de anos antes de mim ou de qualquer pessoa que vá viver centenas de anos depois. Claro que posso estar enganada e no futuro a neurociência descobrir que cada traço do caráter de uma pessoa e cada escolha que ela faça já está determinada na sua genética. Não tenho como afirmar que isso não é verdade mas, hoje, o máximo que posso dizer é que não sei e por não saber não vou agir como se assim fosse. Sem provas não acredito, é por isso que sou ateia. Então, se meu caráter não depende nem de meus antepassados longínquos nem de meus longínquos descendentes existirem ou não, simplesmente não vejo nenhum motivo para me preocupar com isso. A única coisa da qual tenho certeza (até prova em contrário) é que um dia não existirei mais, nem como lembrança, nem como registro, nem como sombra, fantasma ou vestígio. E isso me parece muito bom!