15 de abril de 2019

PESSIMISMO E REALIDADE

“O mundo é um lugar horrível”, declarou Trump em seu livro Think Big. “Os leões matam por comida, mas as pessoas matam por esporte.” E: “A mesma ganância ardente que faz as pessoas saquearem, matarem e roubarem em situações de emergência, como incêndios e enchentes, opera diariamente nas pessoas comuns. Ela se esconde debaixo da superfície e, quando você menos espera, levanta sua cabeça tenebrosa e morde você. Aceite. O mundo é um lugar brutal. As pessoas vão aniquilar você por pura diversão ou para se exibir para os amigos.”

Nunca vou elogiar Donald Trump porque ele é e representa o oposto do que defendo como ética, decência e tudo que vejo como positivo no que se poderia nomear como humanidade. No entanto, lendo o livro A Morte da Verdade, de Michiko Kakutani, na página 191, trombei com o trecho acima e sou obrigada a dizer que me parece muito correto. O mundo é sim um lugar horrível e as pessoas matam por esporte, discriminam, subjugam e humilham outras pessoas usando os argumentos mais esdrúxulos, contraditórios, falsos e absurdos para “justificar” todo o mal que praticam. O problema com Trump é que escolheu se tornar aquele ser em lugar de combatê-lo, e o problema com todos os seus apoiadores, admiradores, aliados e defensores é que fizeram a mesma escolha. A maioria das pessoas que admiram, defendem e invejam os predadores mais poderosos se comportam, nos níveis a que têm acesso, como esse ser humano que Trump descreveu tão bem. E quando um deles consegue algum poder real, como o governo de um país, o mundo se torna um lugar ainda mais horrível. Essa é a história da humanidade.

Falar em “as pessoas” para destacar as falhas do animal humano pode parecer que estou generalizando e dizendo que todas as pessoas se enquadram nessa classificação de predador abominável, mas sei muito bem que não é assim. Estou lendo também o livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari e, na página 26 ele diz que “A tolerância não é uma marca registrada dos Sapiens. Nos tempos modernos, uma pequena diferença em cor de pele, dialeto ou religião tem sido suficiente para levar um grupo de Sapiens a tentar exterminar outro grupo”. E pergunta: “Os Sapiens antigos teriam sido mais tolerantes para com uma espécie humana totalmente diferente?”. É verdade que nós, como animais, não somos tolerantes e adotamos o assassinato e o extermínio corriqueiramente em nossa história, possivelmente desde a época em que éramos caçadores coletores e, no mínimo, ajudamos a exterminar os outros Sapiens que dividiram o planeta conosco naquele período. Mas, isso não quer dizer que não podemos, como indivíduos e como grupos, usar a mesma inteligência da qual temos nos orgulhado tanto a ponto de, por causa dela, nos julgarmos superiores e mais “evoluídos” do que os outros animais para chegarmos à conclusão de que não somos superiores aos outros seres humanos, não somos os donos e senhores do planeta com direito à exploração irrestrita da vida que ele contém e podemos e devemos respeitar o outro, seja humano seja animal, e não causar dano nem nos omitirmos diante do sofrimento de outro ser vivo. Podemos sim usar nossa inteligência para repensarmos nossa animalidade ancestral, e muitos de nós, em vários níveis e de várias formas fazemos isso, e são essas pessoas que tornam possível, depois de tudo, ainda ter alguma esperança na humanidade.

Mas não é fácil, seguramente não é fácil ser otimista quando vemos o quanto a maioria das pessoas está sempre disposta a aderir, a defender e a lutar por qualquer ideia que a favoreça, seja como indivíduo seja como grupo. Principalmente como grupo, porque além do sentimento de superioridade individual há sempre a valiosíssima sensação de pertencimento, de acolhimento, de ser “parte de algo maior”, por mais que esse “maior” seja um mito, uma invenção, uma mentira, uma fraude. Para se sentirem privilegiados, superiores, melhores e mais dignos do que todos os demais, pessoas e grupos são capazes de acreditar em qualquer mentira confortável, não só se recusam a usar a razão naquele quesito como chegam a hostilizar - a ponto de usar a violência mais letal - qualquer um que tente quebrar ou expor essa mentira.

Quase todos os discursos que defendem algum tipo de superioridade de um determinado grupo sobre outro está usando a primeira pessoa, do plural ou do singular. “Eu” sou sempre um membro do grupo que defendo como aquele que tem direitos “inalienáveis”, “sagrados”, “lógicos”, “justificados”, “históricos” e “ele” é sempre um membro do grupo que deve se curvar diante da minha superioridade. Claro que, como sou inteligente, muitas vezes consigo camuflar meu discurso de forma que a dicotomia eu-ele não fique tão clara, e posso até, porque está claro que sou superior, conseguir que “ele” se convença de que meu discurso é impessoal e isento, posso até mesmo conseguir que um ou outro “ele” reproduza meu discurso, se convença e convença outros “eles” a se colocarem sob a minha “proteção”. Afinal, eu sou mais inteligente!

No livro Sapiens, citado acima, páginas 147-148, ficamos sabendo que as razões que levaram os europeus que colonizaram as Américas a escravizarem os africanos em lugar dos europeus do leste ou dos asiáticos não tiveram nada a ver com inferioridade biológica dos negros ou maldição bíblica. De acordo com o livro, três fatores os levaram a optar pelos africanos: a menor distância da América, o fato de já existir um comércio do tipo para o Oriente Médio e a maior resistência dos africanos às doenças tropicais, afinal, transportar pessoas que morreriam de malária antes de dar lucro não era interessante. Ou seja, basicamente, a escolha teve como razão o que costuma ser a razão maior na criação de todo e qualquer mito, mentira ou tabu: Dinheiro e poder.

Todas as demais “razões” são habilmente criadas e habilmente divulgadas depois e, como disse Paul Joseph Goebbels, uma mentira contada muitas vezes se transforma em uma verdade. A mentira que cria e sustenta o preconceito se entranha de tal forma que continua sendo “verdade” para muitas pessoas e grupos e, em muitos aspectos continua determinando a estrutura de uma sociedade, mesmo depois de anos, décadas ou até séculos de acúmulo de evidências e provas de que acreditou em mentiras. Ainda existem nazistas, ainda existem racistas, ao que parece ainda existem parsis e ainda existem pessoas e grupos que defendem a “verdade” irracional que justifica seus preconceitos com a violência mais brutal. Aparentemente não há racionalidade que possa superar o prazer estúpido e animalesco de se sentir superior e de ser parte de um grupo privilegiado. O animal que somos continua sendo o animal que mata e extermina em nome da sua alegada e nunca comprovada superioridade.

Isso é verdade para a mentira de que “Os arianos são superiores e os judeus são a escória que deve ser eliminada”, é verdade para “Os negros nasceram para serem escravos, é da natureza deles” e, pelo que diz a personagem Aban na página 175 de outro livro que estou lendo, A distância entre nós, de Thrity Umrigar: “Esses ghatis são sempre ghatis. Nós, parses, somos os únicos que tratam as empregadas como rainhas. E sempre recebemos o troco”, é verdade para os herdeiros das antigas castas superiores indianas. Nesse capítulo do livro, no qual outros personagens justificam e defendem estupidamente a ideia da supremacia parsi e da inferioridade dos não parsis, o que me pareceu emblemático foi que a mulher que se coloca contra todo o discurso preconceituoso está defendendo uma empregada que ela mesma não permite sequer que se sente em uma cadeira de sua casa. Para mim, essa personagem mostrou de forma muito eficiente a dificuldade que até mesmo as pessoas mais cultas, esclarecidas e sensíveis têm de se livrarem do preconceito internalizado em sua educação e sua cultura.

Sou branca, sou mulher, sou heterossexual, sou paulista, sou brasileira, sou professora, sou classe média, sou velha, tive lar, tive família, tive amor, tive acesso à educação, não tenho nenhum tipo de limitação ou deficiência física, sou casada, nunca fui espancada pelo meu marido, sou mãe de um filho heterossexual e intelectual e fisicamente “perfeito”. Isso tudo e cada uma dessas características me torna uma pessoa pertencente a um determinado grupo e, em alguns deles, tive “permissão” para internalizar algum tipo de preconceito. Em maior ou menor nível foi o que fiz e, com o tempo, tive que observar, questionar, pensar e aprender muito para me livrar deles. Nunca tenho certeza de ter conseguido, por isso continuo afiando minha empatia, me educando e me policiando. A verdade sobre mim, se é que há alguma, é que nunca estarei pronta e sempre serei aquela pessoa que não consegue entender aqueles que não lutam contra seus preconceitos e que, ao contrário, se agarram a eles como animais famintos.

Há pessoas que em lugar de tentar olhar para aquele que é alvo de preconceito, desvia os olhos, aceitando e propagando a “verdade” de que o preconceito não existe porque somos um povo pacífico e tolerante. Há pessoas que em lugar de tentar se colocar no lugar daquele que é alvo de preconceito fica procurando “justificativas” para poder dizer absurdos como “Isso não é natural”, “Homossexuais são todos promíscuos”, “Eu não sou homofóbico, mas...”. Há pessoas que adotam felizes e replicam entusiasticamente frases do tipo “Feministas são mulheres feias e mal-amadas”, “Mas isso é puro mimimi, somos todos iguais e todos podem vencer na vida com o próprio esforço”, “Ela queria o que andando com essa roupa?”, “Tá com pena? Leva pra sua casa!”, “Por que não tem o dia do orgulho hétero?”, “Bandido bom é bandido morto”, “A história comprova, índio é tudo vagabundo”. Há pessoas que replicam, divulgam e, pior, ensinam aos seus filhos todos esses “conceitos”, todas essas “pérolas de sabedoria” e outras “verdades” do tipo, sempre destituídas de empatia, conhecimento, interesse, raciocínio, verificação honesta dos fatos. E, o mais terrível, fazem isso com ênfase e orgulho, sem qualquer resquício de bondade.

Muitas dessas pessoas são aquelas mesmas que mandam mensagens de otimismo, mensagens religiosas, mensagens positivas impregnadas de palavras adocicadas como “amor”, “amizade”, “felicidade”, “carinho”. Muitas dessas pessoas frequentam assiduamente igrejas, templos, sinagogas, terreiros, encontros, retiros espirituais, marchas para Jesus, e outros eventos e lugares de confraternização, sempre em nome de um deus que, dizem, é todo bondade e amor. E elas, as pessoas fiéis, pias, tementes, se comportam nessas ocasiões, e em muitos casos também fora delas, como pessoas que visivelmente se julgam santas, iluminadas, ilibadas. Elas em geral demonstram sentir que são almas puras ou, no mínimo, que estão a caminho da purificação. Espalham a “palavra”, divulgam sua fé, usam camisetas e bijuterias com os símbolos que as distinguem como parte daquele grupo privilegiado que terá direito a um lugar privilegiado “À mão esquerda de deus pai todo poderoso”. Como elas conseguem é, para mim, um mistério maior do que a questão do surgimento do universo.

Essas pessoas são más? São boas? Se não podemos chegar a uma resposta definitiva sobre o que é o bem e o que é o mal, nada mais previsível do que não haver resposta definitiva para essas duas perguntas. Nesse caso, posso dizer o que penso e argumentar a respeito, e o farei: Essas pessoas são más! E, mais. Essas pessoas são hipócritas e egoístas. Principalmente egoístas. Mas, e essa é a parte mais difícil de concluir e assumir: Elas não são assim tão diferentes de cada um dos que, como eu, ficam indignados com esses comportamentos. Cada um de nós, em algum nível, nos comportamos como essas pessoas e o máximo que podemos dizer é que elas, ou algumas delas, são mais nocivas do que nós porque levam seu egoísmo a um grau mais elevado do que a média dos seres humanos o fazem. Isso se chama conviver com contradições, e é o que melhor fazemos, de acordo com Yuval Noah Harari, e eu concordo completamente com ele, apenas lamento muito mais... e isso talvez seja mais uma mostra do meu egoísmo atávico. Quem me autorizou a, com base apenas em um livro de história que tem que cumprir certos requisitos para ser considerado como tal, concluir que EU sou mais sensível às mazelas da minha raça?

Na página 172 de Sapiens lemos que: “Na Europa medieval, um nobre típico ia à igreja pela manhã e ouvia o sacerdote: ‘Riquezas, luxúria e honra são tentações perigosas. É preciso superá-las e seguir os passos de Cristo’. Voltando para casa, o nobre vestia suas melhores sedas e ia a um banquete no castelo de seu soberano. Lá, o vinho fluía como água, o menestrel entoava canções sobre Lancelot e Guinevere e os convidados compartilhavam piadas sujas e narrativas sangrentas de guerra. ‘É preferível morrer a levar uma vida de humilhação. Se alguém questiona sua honra, só o sangue poderá anular o insulto. E o que pode ser melhor do que ver nossos inimigos fugindo e ter suas belas filhas estremecendo a nossos pés?’”. Os senhores de engenho também iam à missa ouvir os mesmos sermões antes de passar no mercado de escravos, antes de mandar chicotear um negro fujão, antes de estuprar uma escrava mais “ajeitadinha”. E sua esposa, lembrando o sermão de domingo e sentindo o “espírito de deus em seu coração”, ajoelhava-se diante do oratório doméstico e rezava até sentir-se uma verdadeira santa, depois caminhava altivamente para a cozinha a fim de verificar como andava a preparação da refeição e, se algo não estivesse a seu gosto, distribuía alguns sopapos enquanto dizia que negros são mesmo animais ignorantes que só conseguem fazer alguma coisa “debaixo de pancada”. Esses, é claro, são apenas dois dos exemplos que se pode colher aos milhares ou milhões na história de nossa contraditória bondade.

Então afirmo: Pessoas que se dizem ou se creem boas são na verdade más, eu sou uma pessoa má e você que está me lendo é uma pessoa má também! Sou uma pessoa má porque faço três refeições ao dia e durante elas nunca penso no fato de que muitíssimas pessoas, incluindo crianças, passam fome. Eu sei disso, tenho consciência disso, lamento tremendamente que isso aconteça, mas não faço nada para que isso deixe de acontecer, exceto escrever muitas vezes a palavra “isso” e dizer ao meu banco que desconte uma quantia irrisória do meu salário para ajudar crianças carentes. No momento das minhas refeições não penso nelas porque – é o que digo a mim mesma – se o fizer vou me sentir mal, porque sei que meu salário de professora não seria suficiente sequer para alimentar as crianças que durante muito tempo vi jogadas pelas ruas de Copacabana, menos ainda para alimentar as pessoas que passam fome ao redor do mundo. E essa é uma verdade que eu poderia usar para me justificar cada vez que entro em minha casa, que compro uma roupa nova, que vou a um restaurante, que sou atendida por um médico do meu convênio, que viajo nas férias e em muitos outros momento em que estou usufruindo de algo que é total ou parcialmente interditado a uma grande quantidade de pessoas.

Posso usar essa verdade como justificativa para todos os meus privilégios porque ela é uma verdade, meu salário de professora realmente não é suficiente para que eu possa dar a todas as pessoas do mundo o mesmo tipo de vida minimamente digna que tenho. Mas se tanta gente não tem sequer o suficiente para levar uma vida minimamente digna, por que aceito morar, trabalhar, me divertir, viver, fazer parte de uma sociedade que permite e tolera que pessoas vivam com fome e morram sem dignidade? Consigo porque sou egoísta e má. Porque lamento mas não faço nada para mudar uma realidade que me incomoda, porque lamento mas consigo viver, consigo sorrir, consigo ser feliz e até mesmo me sentir grata à minha sorte quase da mesma forma que outras pessoas que fazem exatamente o que faço conseguem agradecer a um deus. Eu, do alto da minha racionalidade briguenta e teimosa, chego a perceber a contradição dessas pessoas que agradecem pelo que têm a um deus que acreditam ser todo poderoso e esquecem de culpar esse deus por não ter dado a todas as pessoas do mundo essas mesmas razões para agradecer. Critico as pessoas que egoisticamente aceitam que um deus todo poderoso deixe crianças morrerem de fome, desde que dê a elas aquilo que têm ou que pedem em oração. Mas quem sou eu para me julgar melhor do que elas?

Outra boa justificativa muito verdadeira que posso usar para minha maldade e meu egoísmo é que, se não agisse dessa forma, se não esquecesse as crianças famintas quando estou diante de uma bela fatia de pizza, se não esquecesse as pessoas doentes e abandonadas quando converso, sorrio e sou feliz com meus entes queridos, se não conseguisse abstrair da minha mente todo o mal que atinge milhões de pessoas eu não conseguiria viver. É fato, sou um animal humano e meus instintos de animal humano me impõe esse egoísmo, essa propensão a cuidar primeiro de mim mesma e das pessoas que amo e só depois, se me lembrar, se tiver tempo, se sobrar recursos, pensar em fazer alguma coisa por alguém que sofre. Mas sou também o animal que pensa, o animal que raciocina, pondera, cria linguagens, mitos, conceitos e verdades. E um dos mitos que crio é o de que sou uma pessoa boa e decente porque vivo minha vida sem causar mal a ninguém e procurando ajudar as pessoas sempre que posso, esse é o mito que camufla o meu egoísmo atávico e a maldade que é toda minha e que virá à tona se eu permitir ou se for de alguma forma colocada diante de uma situação na qual meu instinto tiver que gritar mais alto.

No livro 1984, de George Orwell, o personagem Winston tenta lutar contra o sistema, tem conhecimento da opressão em que vive e ama Suzanna, mas quando é torturado por O’Brien chega àquele ponto em que todas as suas resistências são quebradas e, sem mentira, fingimento ou revolta, deseja que toda a dor seja transferida para Suzanna, vê o que O’Brien quer que ele veja e adora sinceramente o Grande Irmão. Winston é um animal humano como eu, e muito provavelmente eu também tenho um ponto em que me entregaria totalmente como ele fez e, para mim, isso não mostra apenas minha fraqueza, mostra principalmente meu egoísmo e minha maldade. E me desculpe ser assim tão direta, mas penso da mesma forma a respeito de você.

O argumento fundamental que estou defendendo aqui é que, dentro do espectro daquilo que nós, animais humanos, costumamos denominar fazendo uso das palavras “maldade” e “egoísmo”, somos maus e egoístas, eu, você e cada um de nós. Acontece que esses conceitos têm nuances como as cores, há aqueles que têm em si essas características mais acentuadas e outros que as têm pouco menos intensas, mas todos nós as temos. O que acontece é que nós tendemos a praticar atos de maldade em diversos níveis - de moto próprio ou influenciad@s por outras pessoas que de alguma forma têm mais poder. E essa tendência a pensar, instigar, aceitar e praticar o mal parece ser mais forte quanto mais forte é o egoísmo. Ou seja, os mais egoístas são mais danosos aos outros e, ao mesmo tempo, tendem a obter maior sucesso. Quando penso no significado das palavras, concluo que estou chamando de egoísmo uma faceta do nosso instinto de preservação, a parte que faz com que a gente procure - e encontre - justificativas para nos preservar e nos preocuparmos acima de tudo com nosso corpo, nosso bem-estar, nossa vida e a qualidade dela. Vendo por esse ângulo, a maldade humana é um subproduto do egoísmo e é inerente a ele porque é também uma faceta do instinto de conservação e preservação que temos como animais que somos. Criamos outras versões e eufemismos para o que é basicamente egoísmo. Amor próprio é só o mais óbvio deles.

Voltando ao livro Sapiens, na página 17, temos que “No Homo Sapiens, o cérebro equivale a 3% do peso corporal, mas consome 25% da energia do corpo quando este está em repouso”. Acrescento ainda o livro Cérebro e Crença, de Michael Shermer que, na página 78, afirma que “Sempre que o custo de acreditar que um falso padrão é real for menor do que o custo de não acreditar em um padrão real, a seleção natural favorecerá a padronicidade”. Então, fico pensando em quanta energia é necessária para procurar fontes, pesquisar a validade das fontes, analisar conhecimentos obtidos e processar tudo isso relacionando conhecimentos novos e antigos entre si até tomar uma decisão, aderir a qualquer linha de pensamento, comportamento, crença ou postura. E, paralelo a isso, quanto de energia um cérebro consome para aceitar como verdade, sem um mínimo de análise, qualquer tipo de informação, opinião ou crença que lhe seja apresentada. Tenho certeza de que há uma diferença consideravelmente grande entre uma e outra situação. Pelo que já vi e li em várias fontes, a economia de energia é característica recorrente no mundo animal, por que seria diferente com o Homo Sapiens?

Daí que, entre a economia de energia, o egoísmo e o instinto de preservação, não parece muito difícil ser uma pessoa que, no mínimo, não se esforça muito para adquirir conhecimentos não práticos, e que em lugar de perceber e analisar contradições e mentiras procura negar a existência de tais contradições, de preferência de forma indireta, ou seja, usando argumentos de terceiros sempre e todas as vezes que essas contradições e mentiras nos favoreçam de alguma forma. Na verdade, arriscaria a dizer que, como indivíduos, os mais egoístas de nós estamos dispostos a gastar mais energia para justificar contradições e criar mentiras que nos favoreçam do que gastaríamos para desvendar essas mentiras e perceber e descartar essas contradições. A economia de energia e o instinto de preservação levam pessoas a se tornarem seguidoras de manada, a não pensarem e não se importarem em saber os danos que causam ou que não se dão ao trabalho de evitar. Não estou pensando apenas em extremos mais danosos e sim no fenômeno em si, que como tal comporta também o mais brando dos egoísmos, do qual um bom exemplo talvez seja a pessoa que passa toda a vida em auto privação praticando “o bem sem olhar a quem” e que talvez o faça com o objetivo de se tornar uma pessoa santa e, quem sabe até, merecer destaque em um livro de história de pessoas “iluminadas”. O egoísmo leva pessoas a serem más, ou a agirem com bondade - ou ilusão de bondade - por ambição, e essa ambição não precisa ser por dinheiro ou poder, pode ser por reconhecimento e simpatia.

Ser um herói ou uma heroína parece algo muito tentador e um mártir é uma espécie de herói. Quando sofro e exponho meu sofrimento, estou também chamando a atenção e me tornando mártir-heroína aos olhos da outra pessoa, quem garante que não estou exagerando esse sofrimento, ou mesmo buscando-o para ser vista dessa forma tão especial? Acho que muita gente faz isso, acho que muita gente FEZ isso. Acho que os mártires de qualquer religião (elas costumam ter muitos deles), além de alcançar o paraíso ou ter direito a setenta e duas virgens, se tornaram mártires também para serem admirados e louvados pela eternidade. Acho também que até mesmo inquisidores se tornaram ativos porque o “trabalho terrivelmente sofrido” deles aos seus próprios olhos (afinal, para um homem santo, infringir dor a alguém é um sofrimento atroz, não é mesmo?) era uma espécie de sacrifício que os levaria aos livros de história como mártires da fé. Madre Tereza de Calcutá é um exemplo recente e bem-sucedido de aparência de bondade egoísta e tremendamente má. Aposto que, enquanto negava alívio ao sofrimento das pessoas de quem “cuidava”, ela se regozijava por ser, além de merecedora do paraíso cristão, digna da imortalidade dada pela história.

Quando éramos crianças, um de meus irmãos tinha bronquite e tinha crises terríveis que algumas vezes obrigava meus pais a levá-lo ao médico e passava a noite no hospital. Como resultado disso e de já ter perdido uma filha, minha mãe tinha uma enorme preocupação com esse meu irmão. Eu e meu outro irmão nos sentíamos negligenciados e, muitas vezes, fingíamos dores e doenças para que nossa mãe desse a nós tanta atenção quanto dava a nosso irmão doente. A bronquite do meu irmão desapareceu quando ele cresceu e adquiriu mais resistência, mas sempre que me sinto doente, antes de dizer a alguém ou de procurar um médico, dou uma parada, procuro pelo sintoma com atenção e me pergunto: “Estou doente mesmo ou estou fingindo?”. Da mesma forma que me vigio para não fingir doença com o objetivo de receber atenção e cuidado do meu marido, preciso checar meus sentimentos, minhas opiniões e minhas ações para saber se não estou agindo pelo puro egoísmo, se não estou escondendo algum desejo ou intenção escusos e inconscientes por trás dessa opinião e dessa ação, preciso me vigiar para saber que não estou expressando - ou concordando com - opiniões que na verdade não tenho para que as pessoas pensem que sou uma pessoa boa, nobre ou inteligente.

Como animais sociais que somos, podemos negar à vontade, mas a opinião dos outros a nosso respeito importa sim! Precisamos trabalhar muito nossa personalidade para que consigamos deixar de valorizar a opinião alheia a ponto de permitir que isso determine nossas ações, mesmo que de forma inconsciente. Se você não o fizer, pode até mesmo ser levado a praticar atos de maldade, casando o egoísmo e a vontade de agradar com a economia de energia. Tento ser muito vigilante, evito expor meus problemas, lamentar minhas dores, reclamar da minha vida, fazer confissões muito íntimas para não correr dois riscos ao mesmo tempo: o de estar causando mal à pessoa com quem falo sobrecarregando-a com meus problemas quando ela certamente tem seus próprios problemas com que se preocupar, e o de estar, inconscientemente, procurando atenção, admiração e deferência, de estar fingindo que minhas dores são maiores do que na realidade são apenas para parecer melhor do que realmente sou. Para mim, o difícil de fazer isso é que nunca tenho uma resposta totalmente confiável porque sei que posso estar “fingindo que não estou fingindo”. Eu não sou confiável, acho que nenhum de nós é.

Como grupo, humano é um animal nocivo e predador que divide a própria raça em grupos denominados "nós" e "eles", sendo "eles" sempre aquele a ser inferiorizado, subjugado, eliminado. Enquanto houver essa divisão - e não vejo nenhum indício de que um dia ela deixará de existir - continuaremos sendo o animal que mata, tortura, extermina, aniquila. Por mais que a gente queira pensar de forma mais "bonitinha" e achar que somos "legais", a verdade é que somos tão terríveis que toda história de toda comunidade humana está plantada sobre a aniquilação completa ou parcial de outra comunidade humana e, se não tiver razão para o ódio, a gente inventa uma. É isso que somos... humanos.

Como indivíduo sempre tem os que são pacíficos - se viverem em condições tais que permitam sobrevivência sem luta - mas como raça somos mais irracionais do que racionais, ou melhor, usamos a racionalidade mais para matar do que para salvar. Na história das civilizações não houve período de paz. Investimos mais na fabricação de armas do que de remédios, e mesmo quando fabricamos remédios o fazemos mais por ambição do que por interesse em salvar vidas. Justificamos assassinato, tortura, preconceito usando invenções confortáveis chamadas religião, pátria e propriedade. Como disse Geoge Carlin e como demonstrou Saramago: Para nossa civilização tão “comportadinha" voltar à barbárie, basta apagar a luz.

Há os que defendem as crenças como solução contra todos os males, mas não acho que isso seja sempre positivo. Não mesmo! As três maiores religiões do planeta têm cada uma delas uma história de horror que é responsável pelo fato de terem se tornado tão grandes. E o que é válido para religião, é válido para outras crenças também. A política, o esporte, a família, a economia. Nossas crenças estão sempre entremeadas pelo "nós" - melhores, superiores, merecedores, eleitos - e o "eles" - inferiores, indignos, subjugáveis, indesejáveis, assassináveis. Tem crença positiva? Sim, com certeza! Mas essas são em geral bastante menos efetivas, menos gerais, mais frágeis e facilmente "porosas" às justificativas que conseguimos encontrar para agirmos de acordo com as crenças mais danosas. Uma pessoa pode acreditar sinceramente que somos todos iguais, que todos os seres humanos têm alma e podem alcançar o "reino de deus", seja qual for esse deus, mas pode, ao mesmo tempo, acreditar que os homossexuais são aberrações e culpados pelas agressões que sofrem; que estrangeiros devem ficar em seus lugares, não importa quanto esses lugares tenham se tornado perigosos; que matar um adolescente que pulou um muro com um tiro certeiro é algo perfeitamente válido e até louvável.

As exceções, que queremos que exista e às quais queremos e temos a pretensão de pertencer, não são insignificantes muito menos destituídas de importância, mas são, em geral, perdedoras. E são perdedoras porque lutam contra o que é padrão e o padrão é apelar para todo e qualquer artifício, por mais injusto, danoso e desonesto que seja, porque tudo podemos justificar com incoerências e artimanhas egoisticamente elaboradas. Para isso nossa racionalidade funciona maravilhosamente bem! O ser humano é capaz de coisas lindas sim, mas é bem mais capaz ainda de coisas horríveis. As guerras, os genocídios, as organizações criminosas travestidas de igrejas e nações, a história toda com seus rios de sangue que nunca pararam de jorrar mostram sempre que não somos uma raça da qual uma pessoa que faça parte dessa minoria perdedora possa se orgulhar. E ter consciência dos fatos pode ser bom: conhecer o inimigo, nesse caso, é conhecer a si próprio.

Sinto uma certa vergonha de me colocar como uma espécie de exceção, tenho consciência de que devo estar sendo prepotente em vários aspectos sobre os quais sequer tenho consciência. Sou professora e continuo lutando, não desisto e ainda tenho esperança de, pelo menos, ajudar a fazer com que a quantidade de exceções não diminua muito. Acho essa luta muito válida e necessária. Mas o fato é que não me deixo enganar, sei que somos animais e animais terríveis. Pode parecer contraditório o que estou dizendo, mas é justamente essa consciência da nossa animalidade que me dá força e vontade de continuar, e que, principalmente, me torna alerta para não permitir que esse lado animalesco determine minhas ações.


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