26 de abril de 2020

RESPOSTA


Eu entendo sim que se tiramos deus de nossas vidas
Algumas das perguntas mais importantes ficarão sem resposta
Entendo mesmo
Acontece que prefiro não ter resposta nenhuma
A me conformar com uma resposta que não satisfaz
Que não faz sentido
Que não responde de verdade
Que é mais imposição do que resposta
Qual é o objetivo da vida?
O objetivo da vida é viver
O objetivo da vida é aprender e amar
É dividir e ajudar
É trabalhar e construir
É valorizar os amigos e a família
É ser feliz e fazer feliz
Por que a vida precisa ter mais objetivos do que esses?
Para mim não precisa
Onde depositaremos a confiança?
Nas pessoas que amamos
Nos sentimentos que temos por elas
Na nossa capacidade de trabalhar e construir
Não há por que depositar confiança
Em um deus que permite que crianças sofram
O que esperar do futuro?
Fazer alguma diferença na vida de algumas pessoas
E depois morrer em paz
Voltar para o mesmo nada de onde viemos
Sem mágoas e sem medos
De onde virá nossa alegria e satisfação?
Das pessoas que amamos
Das coisas que aprendemos
Dos bens que praticamos
Do trabalho que realizamos
Dos livros que lemos
Não!
Deixar de acreditar em deus não é
"Viver por viver"
É viver sem medo de inferno ou castigo
Sem a soberba de me achar melhor do que o outro
porque “um deus me ama
É depender de mim mesma
E aceitar o outro como meu igual
Não acreditar em deus é ser livre.

25 de abril de 2020

O PRINCIPAL MANDAMENTO


Que mundo lindo teríamos se metade dos cristãos cumprisse o que eles chamam de “Principal mandamento do cristianismo” e que já me disseram mais de uma vez ser o mandamento único a que Jesus reduziu os dez do velho testamento “simplificando” assim a maneira de seguir a bíblia

O que eles chamam de “simples” é o “Amai ao próximo como a ti mesmo”, chamam de simples porque não o entendem e não o praticam. Em defesa deles devo dizer que não o praticam por total impossibilidade de fazê-lo. Mentem, mas não é por má vontade, é por ignorância (no bom sentido) e impossibilidade; impossibilidade física, psicológica, mental, de formação, atávica, humana, animal, de praticar o que afirmam praticar. Sim, porque se você pensar um pouco não há como um ser humano amar da mesma forma todos os outros seres humanos. Imagine alguém que ama todas as crianças exatamente como ama o próprio filho; alguém que em situação de pânico e estando os dois juntos se preocupa tanto em salvar o estranho completo quanto o próprio irmão de sangue; alguém que gastaria o último centavo e o último esforço para salvar a mulher da qual ouviu falar da mesmíssima forma e com o mesmíssimo desespero e preocupação que dedica naturalmente à sua mãe doente. Há ou houve no mundo alguma pessoa assim? Sou cética e digo que não, o mais crente e iludido Polyana daria uma dúzia de nomes, alguém menos Polyana, mas ainda assim crente, daria o exemplo de uma ou duas pessoas ao longo da história...

Pois bem, se metade daqueles cristãos que dizem praticar esse mandamento e tentam nos convencer de que isso é simples fizesse mesmo o que dizem fazer, nós, pobres mortais ateus, agnósticos, descrentes e não-cristãos, certamente viveríamos em um mundo extremamente melhor.

Olhei no Google agora e vi que no mundo existem aproximadamente 2,1 bilhões de cristãos, quanto é a metade disso? Arredondando pra baixo teremos um bilhão de pessoas espalhadas pelo mundo, sendo a maioria no ocidente. No Brasil temos aproximadamente 26 milhões de cristãos, novamente dividindo ao meio teríamos, no Brasil, 13 milhões de pessoas amando ao próximo como a si mesmas. Esses 13 milhões de pessoas não permitiriam que elas mesmas passassem fome, sofressem maus tratos, vivessem jogadas pelas ruas, morressem abandonadas; portanto alimentariam todos os mendigos e crianças abandonadas do país, já que, seguindo o mandamento único e simples, amam a cada uma dessas pessoas como a si mesmas. Acho que 13 milhões de pessoas, algumas certamente ricas, poderiam acabar com a fome no país sem dificuldade.

Continuando: 13 milhões de pessoas amando ao próximo como a si mesmas não permitiriam jamais que uma criança vivesse sem lar, é só fazer as pesquisas: Quantas crianças abandonadas temos? Fui pesquisar e vi que existem no Brasil por volta de dois milhões de crianças abandonadas, se cada cristão que ama ao próximo como a si mesmo adotasse uma criança, ou duas certamente não teríamos mais crianças jogadas pelas ruas. Olhando os números: se 13 milhões de cristãos que amam ao próximo como a si mesmos resolvessem adotar todos os menores abandonados do país nem teria menor pra todo mundo, daí os que não adotassem crianças poderiam acolher um mendigo ou um velho, porque existem também pessoas que não são menores mas que estão igualmente abandonadas. Tendo 13 milhões de pessoas acolhendo um ser humano abandonado que eles amam como a si mesmos não teríamos mais pessoas, menores ou maiores, jogadas pelas ruas e praças das cidades brasileiras. Problema resolvido.

Ainda teríamos o problema não menos grave das famílias que vivem em condições que os sociólogos chamam de “linha abaixo da pobreza”. Então esses 13 milhões de cristãos que realmente seguem o principal mandamento, de repente poderiam pegar o dízimo que dão para encher o rabo dos líderes de suas igrejas de dinheiro e fazer uma “desviadazinha básica” aplicando essa grana em recursos para ajudar as famílias, primeiro com o urgente e depois dando cursos, profissionalizando e colocando no mercado de trabalho toda essa gente que precisa alimentar, vestir e educar seus filhos mas não pode. Muitos desses 13 milhões de cristãos que amam ao próximo como a si mesmos são empresários e, portanto, poderiam empregar e pagar salários dignos a essas pessoas que eles amam como a si mesmos.

Agora pensem nos outros países de maioria cristã, muitos desses países são ricos, podem portanto, com sua metade de cristãos que realmente seguem o principal mandamento, não só acabar com esses mesmos flagelos, que em seus países existem em números geralmente bem menores, como ainda ajudar, e muito, a acabar com esses problemas nos demais países do mundo. Se metade dos cristãos dos Estados Unidos e da Europa fossem cristãos que seguem o mandamento principal, eu ouso dizer, e duvido estar errada, que não haveria mais crianças morrendo de fome na África, na China, na Índia... Se pararmos por aí já temos o fim de três flagelos: o menor abandonado, o maior abandonado e a família abandonada. No Brasil certamente, no resto do mundo quase com certeza.

Podemos ainda pensar na “contaminação” que essas providências radicais de metade dos cristãos do mundo teria no restante dos cristãos e até nos não-cristãos. Acho que religiosos de outras religiões e seitas ficariam contaminados e sentiriam que seus deuses também querem deles uma atitude de verdadeiro amor ao próximo, então haveria budistas, xaonistas, umbandistas, wicas, e mais milhões de pessoas contagiadas pelo “amai ao próximo como a ti mesmo” trabalhando em tempo integral para tornar o mundo melhor.

Quantos cristãos ou religiosos de outras correntes, amando ao próximo como a si mesmos, conseguiriam pegar em armas e sair a campo matando gente? Acho que os exércitos do mundo seriam muitíssimo menos violentos, menos letais e mais úteis porque ao invés de estarem os soldados de um país, armados até os dentes, distribuindo tiros e coronhadas para “pacificar” revoltas, estariam os soldados de um país, armados do amor ao próximo, distribuindo sorrisos, alimentos, remédios e esperanças para tornar belas as vidas dos habitantes do seu e dos outros países, pessoas que eles amariam como a si mesmos... Além disso, esses soldados estariam obrigatoriamente bem menos armados; sim porque existem também, e deixariam de existir, pelo menos pela metade, cristãos que dizem amar ao próximo como a si mesmos e que são proprietários, dirigentes, engenheiros, criadores e vendedores de armas.

E olha que nem citei os ateus, os agnósticos, os iconoclastas, os descrente que são vistos por muitos cristãos que dizem amar ao próximo como a si mesmos como seres daninhos, crias do mal e entes não humanos que devem ser eliminados da face da terra ou, no mínimo, perderem o direito de serem considerados como cidadãos mas que tenho certeza, teriam muitos de seus representantes (eu inclusive) de mãos dadas com esses cristãos, trabalhando por esse mundo utópico.
Agora dá pra se perguntar: se metade dos cristãos realmente seguisse o mandamento que dizem seguir e que afirmam ser básico, resumo e simplificação da bíblia, viveríamos ou não em um mundo melhor?

24 de abril de 2020

MAIS ARGUMENTOS CONTRA DEUS


Graças a um amigo descobri que tenho sempre uma posição tomada, uma opinião construída, antes de escrever um texto e que crio esse texto para refletir sobre minha opinião. Ou melhor: Escrevo depois de muito pensar no assunto e para que as pessoas que porventura venham a lê-lo possam refletir sobre essa minha opinião. Acho que é por isso que nunca me ofendo quando me ofendem, quando mandam e-mails ou deixam comentários ofensivos nos meus textos: Quando escrevo é porque já refleti muito sobre aquilo, a ponto de ter segurança e de estar pronta a assumir a responsabilidade pelo que digo.

Estou, é claro, falando principalmente a respeito dos meus textos que criticam e até “ofendem as religiões e deus”. Esse amigo me disse que não posso negar deus simplesmente afirmando que ele teria que conhecer o mal para julgá-lo. Mas eu não disse que deus teria que saber o que é o mal para JULGAR o mal, disse que ele teria que saber o que é o mal para (a partir do nada mais absoluto) CRIAR o mal. Acho que deus não pode ser inteiramente bom porque, se assim fosse, ele não saberia ou não teria desejos de que qualquer criatura sua soubesse ou sentisse na pele, o que é o mal; pelo menos não saberia tão bem a ponto de criá-lo a partir do nada. Ou ainda, caso soubesse, sua bondade o impediria de criar esse mal e, mais ainda, de permitir que ele perdurasse tanto tempo. Posso não precisar saber exatamente o que é uma coisa para julgá-la, mas tenho que saber, ou pelo menos fazer uma boa ideia do que seja essa coisa para criá-la e, pior ainda, a gente normalmente cria apenas aquilo que de alguma forma nos agrada.

E, antes que alguém o use novamente eu aviso: aquele argumento religioso de que deus não criou o mal não me convence: Se ele criou, a partir do nada, tudo o que existe, e se ele tem, como afirmam os crentes, a tal onisciência, então ele obrigatoriamente criou o mal ao criar o homem ou o tal do anjo que se rebelaria contra ele. Aliás, a onisciência que atribuem a ele é comprovação por si mesma de que ele conhece sim o mal, assim como o fato de tê-lo criado e de permitir que esse mal predomine no mundo comprova que, de alguma forma, ele aprecia o mal. É com base nisso que afirmo sempre que o deus bíblico, “talmudiano” e “alcorânico”, se existisse, teria que, obrigatoriamente, ser um sádico.

Tenho outra mania com a qual muitas pessoas não concordam: julgo muitas coisas como sendo boas ou ruins e as pessoas não costumam aceitar bem esse meu pensamento maniqueísta; mas é que não tenho outro parâmetro para julgar e, por mais que as pessoas me afirmem o contrário, eu não consigo ver os furacões, tornados e outros fenômenos naturais que causam mortes como outra coisa senão coisas ruins. E por quê? Porque não apenas alguns mas muitos seres humanos, e não apenas seres humanos mas muitos animais sofrem e morrem em decorrência deles. Tudo bem que uma árvore não é boa ou ruim porque ela não tem uma intenção altruísta e generosa no ato da produção dos seus frutos e na possibilidade de sombra de seus ramos; tudo bem que um furacão não é bom ou ruim porque não é levado por nenhum tipo de decisão consciente e ditada pela maldade pura e simples quando destrói; mas um furacão mata gente, mata bicho, destrói cidades, arrasa casas, ninhos e tocas, por isso, no meu olhar simples de ignorante habitante do planeta, eu julgo o furacão como algo ruim e a árvore como algo bom. Não sei fazer de outro jeito, não sei sentir de outro jeito.

E toda explicação geológica sobre as placas tectônicas e a pressão interna do planeta não cabe como justificativa que desabone meu parâmetro de julgamento quando digo que um terremoto é algo ruim porque estamos falando de deus, lembra? O tal deus que é ONIPOTENTE e que criou tudo a partir do nada mais absoluto. Pois se existe como me afirmam os crentes, então ele criou a terra e deu a ela essa condição geológica que a faria ser, ao mesmo tempo que uma mantenedora, uma destruidora de vidas. Daí, acho que dá para perceber a que meu raciocínio leva: Não julgo o furacão ou o terremoto ruins, em si e conscientemente; julgo deus ruim - se ele existisse - por ter criado o furacão e o terremoto ou, mais especificamente, por ter criado a terra e dado a ela a condição e a necessidade de que nela tenha furacões e terremotos.

O que sinto é que todas as pessoas com quem tenho falado a respeito desse assunto esquecem sempre de que a ideia de deus não pode ser confrontada com leis físicas já que ele teria, como criador de TUDO, que ter criado também essas leis. As pessoas colocam as leis da física, da química, da biologia, da natureza enfim, como se elas fossem anteriores à existência de deus; mas se elas forem - e disso as pessoas se esquecem - elas se tornam apenas mais um argumento a favor da minha tese de que deus não tem como existir; afinal, se ele é todo poderoso não pode estar sujeito às leis da natureza e, se ele está sujeito a essas leis não é todo poderoso, portanto não é deus, portanto não existe.

Sem crer em deus todos os fenômenos se aplicam e se definem como fenômenos pura e simplesmente, sem que caiba a eles qualquer tipo de julgamento de responsabilidade consciente, embora eu, como indivíduo, julgue como um mal toda e qualquer catástrofe que causa sofrimento e ceifa vidas. Mas se admitirmos a ideia de deus, então posso sim julgar os fenômenos como atos bons ou ruins e, principalmente, julgar com esse critério o criador de tais fenômenos. Se deus existe e criou o furacão, então ele é mau porque o furacão é um mal, é algo que destrói vidas no sentido literal e no sentido poético do termo. Não esquecer que o mesmo que estou falando de deus por ter criado o furacão posso dizer desse mesmo deus por ter criado qualquer outro fenômeno natural; e o que estou falando sobre fenômenos naturais posso falar sobre toda e qualquer coisa que faça mal a algum ser vivo, desde um vírus até um ser humano. Existem muitas coisas ruins no planeta e, se deus existisse, ele seria responsável por cada uma delas.

Acho que o fato de eu, e qualquer pessoa, poder pensar e argumentar com respaldo lógico demonstrando as falhas do conceito e da ideia de deus comprova que esse deus não existe. Pelo menos não existe como é definido pelos crentes, principalmente pelos adeptos das três maiores religiões do mundo. Se ele existisse mesmo e se fosse como o definem, o mundo, os animais e as pessoas (suas criações) não seriam sequer parecidos com o que são e, mais ainda, não haveria como duvidar de sua existência porque ele a teria deixado clara e inequivocamente expressa desde sempre e através de um veículo confiável, não de livros velhos e plenos de ranço.

20 de abril de 2020

NEGANDO A CRENÇA: VIDA APÓS A MORTE


Não consigo acreditar em vida após a morte, em fantasmas, em espíritos, em pessoas "recebendo" ou "incorporando" outras pessoas, em reencarnação, em experiências de sair do corpo ou qualquer outro tipo de relação com o “lado de lá”. Para mim o Chico Xavier é apenas um charlatão que deu certo, talvez por acreditar na própria mentira. Não consigo acreditar na existência de alma, não vejo sentido nessa dualidade que os que aceitam a tal vida depois da morte usam para definir-nos: "Somos corpo e alma". Na minha visão somos corpo; só corpo. Quando nosso corpo está vivo é porque nosso cérebro está funcionando e todas as manifestações, que normalmente se confunde com "alma", são algo que pode, no máximo, ser chamado de mente, no sentido de que são resultados do "trabalho", ou das atividades, do nosso cérebro. Não consigo acreditar que haja alguma coisa além disso. 

Somos só corpo, a alma não existe e a mente é apenas manifestação do corpo. Especificamente do cérebro, mas não apenas do cérebro, também da interação do cérebro com o restante do corpo, com o mundo exterior e talvez com outros seres vivos independentes. Afinal, não sei se naquilo que sou há, e qual seria, a participação dos bilhões de micro-organismos que habitam o meu corpo. O que é e por que existe vida é assunto complicado, parece mágica, mas só é complicado porque não entendemos como funciona. É o que penso. 

 E não acho que esta ideia de que somos só corpo seja terrível, acho que depende da maneira como você encara. Viver sabendo que não há nada além do que você é fisicamente, e mais ainda, sabendo que mesmo suas maiores certezas podem ser apenas engano do seu cérebro, pode fazer toda ou nenhuma diferença, depende de como você resolve aceitar isso. Eu chego a achar confortador e muito instigante.

Fico pensando no que existe além do que eu vejo e sinto; não no que existe além no sentido espiritual, não acredito em espírito, falo no sentido físico mesmo. Quantas coisas lembro errado? De quantas coisas esqueci? Qual foi mesmo a minha vida, a que lembro ou a que esqueci? Vou lembrar ou vou esquecer o que está acontecendo agora? Vou lembrar como exatamente como é ou vou escolher lembrar diferente sem saber que não é assim que está acontecendo? São tantas perguntas! Eu gosto de "perder" tempo pensando nessas coisas.

 E o que é esse corpo que sou? Do que é formado? Passo muito tempo me perguntando do que é feita a matéria. Sei que sou matéria, mas eu sei o que é matéria? Mesmo quando leio, e entendo, as explicações dos cientistas, eu sei o que é matéria? Acho tudo isso muito apaixonante para se pensar. Agora, quanto a viver, para o meu dia a dia, não faz diferença nenhuma. Não vou deixar de ser quem sou, de fazer o que faço, de viver como vivo e de amar como amo porque sou só matéria e porque não tem nada depois da morte.

Se houvesse outra vida, isso seria “muito absurdo demais”! Nessa outra vida teríamos uma aparência e uma essência, algo equivalente ao tal corpo e alma? Teríamos algum tipo de corpo, mesmo que não fosse constituído de matéria para que as outras pessoas nos “vissem”? Como seria esse “corpo”? Veríamos as outras pessoas? Poderíamos reconhecê-las? Como as veríamos? Todas se pareceriam com o que eram quando morreram, todos seriam jovens e belos ou cada um escolheria sua aparência? Como seus amigos e familiares reconheceriam você caso só os tenha conhecido na infância ou na velhice? Haveria uma terceira possibilidade mágica na qual todos se reconheceriam independentemente da aparência ou ninguém precisaria reconhecer ninguém?

Se for para termos uma essência e uma aparência, qual EU de cada pessoa viveria novamente? A gente é muitas pessoas diferentes ao longo da vida, se uma dessas tantas pessoas que a gente foi tivesse o privilégio – ou castigo – de viver novamente, o que seria feito das outras pessoas que fomos? Todas elas estariam mortas? Como sei que eu continuo sendo eu mesmo não sendo mais aquela eu do meu primeiro ano na escola, por exemplo, o defensor da vida após a morte poderia dizer que é “a mesma coisa”: eu continuaria a ser eu depois da morte da mesma forma que continuei a ser eu depois da adolescência, talvez faça sentido, mas será que é mesmo “a mesma coisa”?

Vamos pensar a possibilidade mais otimista, aquela que, na minha opinião, todos os que acreditam prefeririam que acontecesse: Eu poderia realmente ser eu se fosse a minha mente da fase mais lúcida no meu corpo do auge da juventude? Me parece bem difícil equacionar de forma convincente essa convivência, ou coexistência, fora da vida que vivi e das experiências que tive e, principalmente, do meu corpo do momento porque, por bem ou por mal, esse corpo, sua aparência, seu estado geral de saúde e sua carga de hormônios, afetou sempre, como é comum em todos nós, meus sentimentos, pensamentos e ações; como eu seria eu sem ele? Se tiver outra vida, estarei em outra realidade e minhas interações e experiências serão outras; passarei a ser outra pessoa? Acho tudo isso muito atraente na verdade, mas ao mesmo tempo muito complexo para fazer sentido.

Uma eu com aparência jovem mas sem corpo, sem livros, sem escola e sem a “pegação no pé” dos meus pais? Minha juventude de volta sem os namoros, sem a curiosidade, o desejo ou a prática do sexo, com suas alegrias, medos, vergonhas e frustrações? Eu jovem sem as festas, sem “encucações”, sem os sonhos de futuro e sem os medos do fracasso? Essa “jovem” seria eu? Quando penso nas tantas possibilidades – tanto da minha vida quanto da vida das outras pessoas – as perguntas são muitas, as dúvidas são todas, as possibilidades de não ser tão bom quanto pode parecer à primeira vista se tornam cada vez mais numerosas. Fica parecendo cada vez mais impossível que realmente possa existir essa tal vida após a vida da maneira que as pessoas que acreditam nessas coisas costumam afirmar que existe.

Não é por teimosia que não acredito (pelo menos eu acho que não é), é porque não encontro respostas que satisfaçam minhas questões, é porque nunca vi nenhuma evidência que pudesse me convencer e, principalmente, porque quando penso no assunto a existência de uma alma ou de uma vida após a morte me parece muitas coisas, todas elas ruins ou no máximo inúteis e improváveis demais para fazerem sentido.

Dizem os que acreditam em espíritos que estamos aqui para evoluir, mas não consigo imaginar qual seria a utilidade dessa evolução e até onde ela chegaria. Evolução para que e até que ponto? Se eu tivesse um espírito, que tipo de evolução esse meu espírito poderia alcançar? Eu chegaria a ser o que mesmo? Um anjo? Uma fada? Uma deusa? Para que eu chegaria a esse ponto? O que eu faria depois disso? Por quanto tempo? Em troca de que e me aproveitando de que situações eu evoluiria? A tal evolução valeria o preço a pagar por ela?

Fico pensando nos horrores que existem nesse mundo, e fico pensando principalmente no sofrimento de crianças. Os defensores da ideia de evolução espiritual dizem que os horrores do mundo servem para a minha evolução, eles afirmam que sofrer e ter conhecimento do sofrimento do outro – para poder ajudar – é parte do meu “aprendizado”. Quer dizer que o sofrimento do outro existe para que eu tenha oportunidade de “ser boazinha”? Então milhões de crianças sofrem e eu, em lugar de me revoltar e de me sentir mal, devo ficar satisfeita porque posso ajudar uma ou outra? O mínimo que posso dizer é que estaria me aproveitado do sofrimento de todas as crianças. Como poderia me sentir bem assim? Acho sinceramente que se um dia eu conseguisse levar meu egoísmo a um grau tão alto a ponto de aceitar o sofrimento de crianças como algo natural e “necessário” por ser "parte do meu crescimento", eu teria INvoluído e não o contrário.

Mesmo com a justificativa comum de que o sofrimento também é "parte do crescimento do espírito dessas crianças" tenho restrições demais: primeiro que a explicação me soa como desculpa esfarrapada e egoísta para não se importar de verdade, e segundo que não vou conseguir aceitar nunca como normal nenhum tipo de sofrimento no qual aquele que sofre não sabe a razão de estar sofrendo. Uma criança muito pequena sofrendo não pode ser parte de um aprendizado, seja da minha “alma” ou da dela. Uma criança sofrendo é apenas um grande horror dentre os muitos horrores de que a vida é feita, e seria uma tremenda injustiça se fosse um acontecimento criado ou permitido propositadamente por um ser transcendental qualquer. Eu me nego, terminantemente, a dar minha adesão a um absurdo tão grande!

A reencarnação – para os que acreditam em reencarnação – tem outro ponto problemático: Renascer em outro corpo e sem a memória do corpo e da vida anterior – como defendem muitos espiritualistas – seria um absurdo de injustiça e implicaria em uma matemática tremendamente ilógica. Seria injustiça porque cada um “pagaria seus pecados”, “corrigiria seus erros” ou “repararia suas falhas” sem se lembrar de tê-los cometido. Seja qual for a nomenclatura, não consigo imaginar de que forma isso poderia servir como aprendizado para alguma coisa. Como alguém pode usar o que aprendeu em uma situação para agir melhor numa outra situação parecida se não se lembra de ter vivido aquela situação e de ter aprendido algo com essa experiência? Na hipótese de as coisas acontecerem mesmo dessa forma, o mínimo que posso afirmar é que essa tal reencarnação, se houver um ser superior qualquer envolvido, parece mais uma demonstração de sadismo, uma armadilha perversa ou, no mínimo, uma piada de mal gosto do que qualquer coisa semelhante a evolução ou a justiça.

Seria uma matemática ilógica porque se estudarmos os números da população mundial ao longo dos tempos tem uma discrepância grande demais, teríamos que imaginar uma linha de montagem fabricando almas novas porque o número de pessoas aumenta muito, e isso mais parece piada do Monty Python. Tudo bem que os defensores dessa ideia ao longo dos anos descobriram outras formas de “resolver” esse problema, muitas vezes com base em descobertas científicas. Um exemplo disso é que antes de se pensar e de se estudar outros planetas como possíveis mundos de alguma forma semelhantes à Terra, ninguém dizia que espíritos renascem em outros planetas, hoje é comum fazerem isso embora eu ainda não tenha lido ou ouvido nenhuma história de alguém que alegue ter lembrança de uma vida anterior e de essa vida anterior ter acontecido em outro planeta. As vidas anteriores “recordadas” são sempre de algum lugar e época aqui da nossa história mesmo, e geralmente dos lugares e épocas mais conhecidos e citados nos livros escolares.

A mim todas as histórias parecem fantasias, ilusões, imaginação ou alucinação, mesmo que, em muitos casos, as pessoas que “viveram” essas histórias realmente acreditem nelas. Na maioria dos casos que ouço não duvido das pessoas, duvido da veracidade de suas histórias, da mesma forma que duvidaria se fosse algo que acontecesse comigo mesma. Se eu tivesse uma experiência do tipo “espiritual” a primeira coisa que faria seria duvidar, portanto, não dou às pessoas mais crédito do que daria a mim mesma. E, à parte as “experiências”, existem as muitas explicações que os “estudiosos de fenômenos espirituais” dão a elas: todas as explicações “lógicas” que leio ou ouço a mim ficam sempre parecendo invencionices, “convincentes” e “convenientes”, criadas para responder o que não tem resposta. Mesmo quando tenho a forte impressão de que os estudiosos não estão mentindo, acho muito difícil dar crédito a eles, penso que, muitas vezes de forma involuntária e até inconsciente, essas pessoas estão usando, selecionando e adaptando conhecimentos para justificar sua crença e não para questioná-la.

Como estou escrevendo esse texto mais como um compêndio de “achômetro” do que como qualquer coisa que possa parecer um texto filosófico ou científico, sei que muitos vão usar o argumento de que não tenho conhecimento do tema e me aconselhar a estudar profundamente essa “ciência” antes de fazer meus julgamentos, ainda mais depois de eu ter ousado falar dos estudiosos que, como cientistas, dedicam anos de vida a esses estudos e pesquisas. Alguns vão relacionar livros e links que me ajudarão a conhecer só um pouco do que eles conhecem, porque muitos realmente estudaram esses fenômenos durante anos. Acreditem, já passei por isso e aos que pretendem me aconselhar profundos estudos, ou estudos “sérios”, minha resposta é essa: Tenho mais de um amigo que acredita que astrologia é ciência, que tarô é ciência. Falam das influências de um planeta "na casa" de outro planeta, de uma constelação ou do sol, e usam tantas expressões que para mim são absurdas com a seriedade de quem está falando de geologia ou medicina. Não tenho dúvidas de que para eles aquilo tudo é ciência. Mas eu SEI que não é!

Tenho mais de um amigo que acredita que somos visitados e abduzidos por extraterrestres que nos estudam com seus instrumentos avançados e suas mentes superiores. Eles argumentam com "fatos" históricos e "científicos" para eles incontestáveis. E tenho mais de um amigo que acredita em tarô e fala das cartas, seus símbolos e seus dignificados da forma mais séria, afirmando que é ciência. Tenho mais de um amigo que faz meditação, conhece tudo sobre as "filosofias orientais", diz que a ciência milenar dos povos orientais é muito superior à nossa “reles e materialista ciência ocidental”. Todos eles dizem que é preciso estudar muito para entender os "mistérios" da crença "científica" que defendem. E tem os meus amigos espíritas que afirmam que espiritismo é ciência e é preciso estudar. Como nenhuma dessas "ciências" vale mais para mim do que as outras, qual eu deveria estudar? Acho que vou ficar com a "reles e materialista ciência ocidental", pelo menos ela eu uso no dia a dia e sei que funciona. Afinal, eu a estou usando agora para escrever esse texto. Por que vou “estudar” essas “ciências” todas, ou qualquer uma delas, em lugar de estudar algo que realmente É ciência? Por que eu passaria horas e mais horas debruçada sobre mapas astrais, cartas “psicografadas” ou compêndios “antigos” sobre as cartas e runas do tarô se posso passar esse tempo lendo Stephen Hawking, Carl Sagan, um bom livro de história ou de filosofia? A vida é curta demais para que eu perca parte da minha “estudando” coisas que não me interessam e não fazem nenhum sentido para mim, principalmente quando tenho bases muito confiáveis para não me interessar por tais coisas.

E as questões não param: Se, de acordo com os espíritas, estamos reencarnando para evoluirmos por que cargas d'água não evoluímos? Em muitos casos os que defendem a reencarnação buscam os outros planetas para explicar isso, dizem que as almas mais evoluídas renascem em planetas distantes. Essa explicação gera tantas questões que não consigo entender como tantas pessoas conseguem aceitá-las: Quantas almas afinal existem? Até onde chega essa tal “evolução”? Em que planeta começou? Com que objetivo existem essas etapas evolutivas? Por que a população de almas não evoluídas, ou no estágio em que estamos, aumenta tanto? Vamos, em um futuro distante, descobrir um planeta povoado por nossos ancestrais reencarnados? Eles se lembrarão de nós? Quando teremos contato com as primeiras almas que chegaram ao ponto máximo de evolução? Elas agora são deuses? Então existem muitos deuses! O que eles estão fazendo agora?

Por aqui não parece haver nenhuma grande evolução; nada se tornou melhor de uma forma que não pudesse encontrar explicação perfeitamente plausível nessa sequência de uma mesma e única vida de cada pessoa que nasceu e morreu desaparecendo para sempre ao longo da história. Nesse nosso mundinho não se pode apontar nada que remotamente se pareça com algum tipo de interferência benéfica das tais “almas evoluídas”, exceto um ou outro gênio ou grande humanista que, quando a gente olha bem de perto, descobre que foram humanos exatamente como nós, ou seja, mesmo a existência dessas pessoas especiais pode ser explicada de forma natural, sem que seja necessário buscar explicações transcendentais. Portanto, não parece ser para cá que as tais “almas evoluídas” vêm. Afinal, na essência, o ser humano é tão "desumano", tão absurdamente violento e mau como sempre foi. Se, com essa nossa vida efêmera, somos apenas uma parte do todo, ou uma “etapa do caminho”, cadê o resto?

Outro ponto muito importante para mim é que todas as crenças em almas, espíritos, vida após a morte que tenho visto estão sempre atreladas à crença em um determinado deus e, inclusive, colocam a tal vida eterna como sendo uma dádiva de deus. Acontece que sou ateia. Fica muito difícil uma ateia acreditar em algo que envolve diretamente a existência de deus. Os espíritas falam em deus e em Jesus; os evangélicos também falam em Jesus e em deus; os católicos falam em Jesus, nos santos e em Deus; os umbandistas falam em deus, em Jesus e em diversos santos. Como não acredito em deuses ou em santos, não tem como aderir a essa ideia. Mesmo os budistas, que creem em outras vidas desvinculando essa crença da clássica ideia de deus, não me parecem fazer sentido entre outras coisas porque eles também, pelo que sei, não explicam, de forma que faça sentido, até onde vai essa tal evolução e para que ela serve.

Sou ateia e, além de ser ateia, sou uma ateia convicta de que, se estivesse enganada e existisse um deus, eu preferiria manter a maior distância possível dele. Para muitos a vida após a morte teria o objetivo contrário ao que seria minha vontade: eles querem viver para sempre com e para deus. Eu realmente não acredito, mas se, contrariando toda a lógica desse e de qualquer mundo, eu estiver errada e essa tal vida após a morte existir incluindo nela o “prêmio” de passar a eternidade ao lado de “Deus pai todo poderoso criador do céu e da terra”, espero sinceramente que nenhuma das minhas ações praticadas ao longo da vida nunca seja suficiente para me tornar merecedora disso que, para mim, seria um castigo medonho. Não consigo imaginar uma possibilidade de deus que eu respeitasse e não consigo imaginar nenhuma possibilidade de explicação que um deus pudesse me dar e que me faria perdoá-lo por ter criado o mundo do jeito que o mundo é. Portanto, não consigo me imaginar ao lado de tal ser se não como tortura, e acho que nem eu mereço um castigo tão terrível.

Existe também uma teoria segundo a qual passaremos novamente pela mesma vida que vivemos antes, toda ela, novamente e exatamente igual. Essa teoria me parece ainda menos válida ou possível, principalmente porque existem duas possibilidades que vejo como igualmente inviáveis: ou teríamos consciência da vida anterior e, nesse caso, provavelmente faríamos outras escolhas e teríamos vidas diferentes, ou não nos lembraríamos de nada e essa hipótese me leva a perguntar qual seria então a vantagem ou o sentido dessa repetição; eu poderia agora mesmo estar vivendo exatamente essa mesma vida pela milésima segunda vez e não saber disso, em que esse “revival” poderia ajudar na minha “evolução espiritual” afinal de contas? E como seria “a mesma vida”, na prática, se não me lembro de nada? Acho que se eu não me lembro, então não aconteceu, ou equivale a não ter acontecido. Então, não há vantagem, tortura, alegria ou tristeza nisso. Não há nada. Mas acho que essa hipótese não foi levantada pelos espíritas e sim pelos filósofos – Nietzsche se não me engano -, então é melhor esquecer por enquanto.

Mais um ponto: Os que defendem a vida após a morte com esse "aprendizado" - ou "evolução" - envolvido geralmente evitam falar a respeito de como ficariam os animais: Que são eles? Eles também evoluem? Existe um planeta habitado por espíritos animais evoluídos? Um dia fomos animais? Em que ter sido ou passar a ser um animal pode ajudar uma pessoa se somos em muitos casos tão diferentes? Não consigo, desculpem mas não consigo pensar seriamente na hipótese de que um dia fui, por exemplo, uma giárdia e que essa vida me ajudou a “evoluir” até chegar ao estágio “espiritual” em que estou. Quando falam sobre os animais fica muito mais sem sentido do que nos argumentos que envolvem apenas os seres humanos. Essa omissão e esses argumentos de “pé quebrado” me parecem um indício muito forte de que não existe nada mesmo; isso porque, na minha opinião, explicar de forma convincente como ficariam os animais – principalmente os menos “bonitinhos”, como as baratas e os vírus – cria uma gama de embaraços muito grande para essas teorias. De repente posso estar falando besteira e pode ter alguma teoria espírita que tenha conseguido detalhar esse aspecto e eu não a conheço, mas pela pesquisa rápida que fiz em sites espíritas, não encontrei nada que fizesse sentido de verdade.

E, finalmente, tenho uma outra justificativa que está mais para brincadeira do que para um argumento sério mas mesmo assim acho que vale uma "analisada": Ando pensando já faz algum tempo em como seria terrível se de verdade acontecesse o que muitas pessoas afirmam sobre existir vida após a morte. Imagina a cena: Você morre e tem alguém lá do outro lado te esperando, depois chegarão outros e você vai se encontrar com todas as pessoas com quem conviveu e teve laços de amizade, amor, parentesco enquanto estava vivendo essa vidinha besta aqui na terra.

Acontece que, pelo que eu entendi, se é que entendi alguma coisa dessa ideia de vida após a morte, do outro lado você é um espírito de luz, você se livrou do seu corpo e, junto com ele, se livrou também de uma porção de coisas negativas que são inerentes à raça humana. Você está um degrau acima para se tornar um espírito puro, você está evoluindo, é um candidato a alguma coisa de suprema-pureza que não consigo fazer ideia do que seja. Mas, enfim, você está lá, com seu pai, sua mãe, seu primeiro namorado, seus filhos, seu marido, todas as suas melhores amigas desde aquela da escola primária até a do asilo, e todos são espíritos de luz candidatos a se tornarem um super-espírito-puro, seja lá o que isso for. Rapazes! Por favor, pensem nesses parentescos e relacionamentos que citei acima masculinizando ou feminilizando as pessoas de acordo com o que se adequar mais ao que foi (ou terá sido quando isso acontecer) a sua vida.

Imagino que, nessas condições não possa haver mentiras, meias-verdades, disfarces, segredos; e mais, imagino que o segredo seu que todos saberão não é aquele que você contaria e do jeito que você contaria, é todo e qualquer segredo; seus atos e pensamentos mais profundos. Todos vão saber as condições, o momento e o que você pensou e sentiu em cada situação da sua vida, tudo aquilo que você guarda só para você e que não diria nem sob tortura a nenhum ser humano do planeta os “candidatos a espíritos de luz” e os “espíritos de luz PHD” saberão. Ou será que você não tem nada a esconder? Nada mesmo? Nenhum pensamentozinho insidioso num momento de fraqueza? Nenhum “Foda-se, ninguém tá vendo mesmo!” naquele dia em que você estava sozinha em casa ou trancada no banheiro? Nunca se arrependeu de algo que sentiu e depois jogou aquilo debaixo do tapete-daquilo-que-não-deve-jamais-ser-levantado?

Não vou fazer uma lista de possibilidades aqui porque não quero constranger você e porque não quero me entregar que também sou humana, mas acho que ninguém escapa dessa; e isso não é verdade só para nós, mulheres. Pensem comigo, garotos: nada a esconder?

Das duas uma: ou eu sou uma anomalia, uma “freak”, uma aberração da natureza, ou todos nós temos os nossos segredinhos inconfessáveis por menos danosos que sejam. Acho que a segunda opção é a verdadeira, mas você pode tentar me desmentir se quiser.

Tenho segredos que não contaria A NINGUÉM nem sob ameaça de morte (acho que todos temos) e se com essa coisa de "alma" eu tiver que me tornar "transparente", abro mão de qualquer privilégio pós morte rapidinho para conservar meus segredos bem guardados!

Podemos ser boas pessoas, respeitar e valorizar os amigos, a família, a sociedade, as leis; podemos ter passado pela vida sem cometer nenhum crime, sem nunca prejudicar propositadamente qualquer pessoa. Mesmo assim não sairíamos por aí dizendo tudo, tim-tim-por-tim-tim, o que fizemos, pensamos e sentimos em todos os momentos da nossa vida.

Como aceitaríamos fazer isso depois de mortos e para todas as pessoas que tiveram alguma importância para nós? E ainda – com a possibilidade de que isso aconteça assim – diante de todas as pessoas e ao mesmo tempo. Dá para pensar em algo mais constrangedor? E ter que ouvir, ou saber de alguma outra forma, todos os “segredinhos sujos” dos seus pais e dos seus filhos? Por favor, escondam minha cara! Acho que se a coisa andar por esse lado a tal vida depois da morte perde muitíssimo do seu charme, não perde não?

Mas, pensando e “caraminholando” sobre o assunto, eu quis nos livrar disso e tentei encontrar uma saída: E se a gente não precisar ser transparente para todo mundo do lado de lá? Podemos restringir essa abertura plena e irrestrita da nossa pessoa a um único ser, por exemplo um outro espírito, mais evoluído que nós e que estaria, nesse caso, como uma espécie de orientador da nossa "caminhada evolutiva".

Ou, se você é religioso e prefere ele, então que esse ser mais evoluído seja Jesus, o espírito mais evoluído de todos os espíritos evoluídos que possam existir (é o que dizem...). Então tá! Só ele vai saber todos os seus segredinhos sujos. Ainda assim ficou um sentimentozinho de “sem-graça” não ficou mesmo? Em mim ficou, eu juro. E olha que nem acredito nesses espíritos evoluídos todos!

Mas quer ser mais restrito ainda? Tá bom: vamos supor então que seja deus, que exista deus e só ele tenha pleno conhecimento da sua personalidade na íntegra. Será que agora dá para encarar uma vida depois da morte e, mais ainda, uma vida depois do esclarecimento total e completo de que alguém além de você sabe TUDO?

Bem, não posso falar por você nem por ninguém, mas garanto que a correr esse risco eu prefiro que não exista vida nenhuma depois da morte. Se puder escolher abro mão, por melhor que seja e sem pensar duas vezes, de qualquer possibilidade de vida após a morte para poder conservar e levar comigo (e só comigo!) para o nada, a minha privacidade. Por mais que eu desconfie seriamente que meus segredos são tão insignificantes que fariam a maioria das pessoas comuns rirem ou bocejarem e que provavelmente fariam o mesmo com um “ser de luz” qualquer, esses são os MEUS segredos, quero e exijo o direito de guardá-los só para mim. Por nada nesse mundo ou fora dele eu aceitaria abrir mão da minha privacidade!

Daí, pensando nisso tudo, me parece bem mais interessante minha mente voltar ao nada que foi até que comecei a existir como eu, é bem melhor que meu corpo se dissolva espalhando os elementos que o compõem pelo mesmo ambiente de onde esses elementos vieram para formá-lo. O ciclo da vida me soa muito mais poético do que ter que justificar o sofrimento de crianças para uma teórica "evolução" da minha (ou de qualquer outra) "alma" até um ponto que não sei qual seja e que duvido muito que me interesse.

Na prática, acho que morrer deve ser muito legal. Sinto até uma certa ansiedade para que que isso aconteça, como quem antevê o que sentirá quando chegar o dia de fazer aquela viagem previamente marcada para um país que não conhece. O mergulho no nada eterno me parece fascinante! Terrível seria o céu cristão: Sentar à direita do deus bíblico me apavoraria! Como o pós vida das outras religiões também não me agrada, penso que saber que só o nada está do outro lado é uma das muitas vantagens de ser ateia.

Não me incomoda deixar meu filho e não me incomoda deixar meu neto porque sei que isso é natural, então não me incomoda. Sei que não sentirei falta deles porque serei nada e o nada não sente, então isso me tranquiliza muito: nenhum aperto de saudade, oh, delícia! Meu filho provavelmente sentirá minha morte, e meu neto talvez sinta alguma coisa também, não sei, mas a dor vai passar logo porque é normal a mãezinha ou a vovozinha velhinha morrer. A dor amaina mais rápido diante do natural.

O que não quero mesmo é morrer antes da minha mãe, ela sim teria uma dor maior – a maior de todas as dores na minha opinião – e nisso sim, dói em mim pensar. Da mesma forma e pela mesma razão, não quero morrer depois do meu filho, como nenhum pai quer embora tantos passem por essa tortura. Seguindo a ordem natural, a morte me parece muito boa, muito tranquila, muito agradável. O único medo que me sobra é o medo da dor, a dor que pode anteceder a morte caso ela venha por uma doença ou acidente sério; por isso, tudo o que desejo é que tenha muita morfina se eu precisar.

Enfim, acho que quando a gente morre a gente acaba e pronto. Fim, fin, fini, ende, the end, final, ACABOU! Não sobra nada, exceto alguns quilos de matéria destinada a voltar para a “tabela periódica dos elementos” à disposição da natureza para ser outra coisa, ou parte de outra coisa. Com o tempo, até a lembrança de quem fomos desaparece total e completamente. Pode ser difícil de aceitar, mas é o que parece mais lógico.

Como conclusão – agora mesmo! - preciso avisar que, embora não tenha medo nenhum, também não tenho nenhuma pressa de morrer. Ainda tenho muitos livros pra ler. Já contei que AMO ler?

17 de abril de 2020

POR QUE SOU ATEIA?


O fato é que ouvir o que as pessoas falam sobre deus sempre me incomodou, sempre teve na minha visão, ou intuição, sei lá, uma certa aparência de mentira que no começo eu não sabia definir bem, mas não perguntava nada porque minha mãe dizia que não se podia falar contra deus. Era pecado.

A primeira vez que li a bíblia fiquei horrorizada, aquela quantidade enorme de morte e violência em nome de deus, ordenadas, apoiadas e até praticadas pelo próprio deus me fizeram assumir totalmente que aquele deus bíblico estava mais para demônio do que para deus. E a maneira que Jesus trata a própria mãe me fez perder muito do respeito por ele que minha mãe procurou despertar em mim desde sempre, principalmente explicando que ele está no meu nome porque é o meu padrinho.

Quase a vida toda, eu pouco falava sobre minhas aversões religiosas, não queria magoar ou ofender as pessoas. Então inventei um deus que não tinha nada a ver com o deus bíblico e que tinha muito a ver com um amigo imaginário que tive na infância e que me visitava só nos sonhos; deus passou a ser aquele amigo, que mudou de nome e não me visitava mais, mas com quem eu podia até conversar e a quem deveria agradecer por tudo que me acontecesse de bom e nunca culpar por nada do que acontecesse de ruim, fosse a mim, fosse a qualquer outra pessoa. E dessa forma me privei de pensar no assunto.

Mas quando veio a internet e comecei a publicar em blog e a ler e conversar on line com outras pessoas tirei a máscara totalmente. Ouvi e li todo tipo de argumento defendendo a existência, a onipotência, a bondade e o amor de deus, procurei por esses argumentos tanto nas pessoas comuns quanto nos pensadores e filósofos e em nenhum momento qualquer um deles conseguiu me convencer ou sequer acreditar em uma mínima possibilidade de existência de deus; nenhum deles. Depois de alguns anos, fiquei ainda mais insistente nos meus textos ateístas porque comecei a perceber os religiosos muito mais insistentes e a insistência deles me incomodou.

          Vejo os horrores presentes na natureza, na história da humanidade e na história do próprio planeta em que vivo desde sempre, desde antes de os seres humanos existirem. Vejo os horrores praticados no mundo e aqui no Brasil, em nome dessa coisa chamada religião, em nome dessa ideia chamada deus: o preconceito que impede pessoas de serem felizes porque amam de um jeito que “deus não gosta”, a interferência das “leis” da idade do bronze em questões de saúde pública; as agressões ao estado laico; os líderes religiosos tirando dinheiro dos pobres, estuprando meninas e abusando de crianças.

          Tudo isso me fez e me mantém ateia. E não consigo entender como pessoas decentes conseguem continuar religiosas, não consigo entender mesmo.

16 de abril de 2020

EU PERDOARIA DEUS


Sabe aquela foto que tem uma criança negra, hiper magra, quase morrendo de fome e sendo observada de perto por um urubu? Aquela foto que deu prêmios ao fotógrafo e não sei se deu alguma esperança de salvação para a criança? Pois bem, eu perdoaria deus por aquilo se ele não fosse onisciente.

Vi no Discovery Chanel que existe um tipo de fungo que se aloja dentro da cabeça de algumas formigas. Lá eles vão crescendo e a formiga começa a ficar maluca, totalmente desnorteada. Daí as outras formigas percebem e afastam o mais que podem a colega infectada do formigueiro porque se ela permanecer no grupo todo o formigueiro será exterminado. Então o fungo atinge um crescimento tal que a cabeça da formiga é furada de dentro pra fora e o fungo sai “plantado” nela como tentáculos, só depois de algum tempo a formiga morre. Eu perdoaria deus por isso se ele não fosse onipotente.

Você sabia é claro, que existiu mais de um lugar chamado Campo de Extermínio onde durante a Segunda Guerra Mundial milhões de pessoas - homens, mulheres, velhos e crianças - foram torturados das mais diversas formas, humilhados das mais diversas e requintadas maneiras e mortos de uma forma tão organizada e eficiente que lembra verdadeiras linhas de montagem de matar pessoas. Pois bem, eu perdoaria deus por isso se ele não fosse onipresente.

Uma mãe passarinha se coloca na frente do veneno de uma cobra, afasta-se do lugar o mais que pode e depois até se deixa picar para desviar a serpente de seu ninho e salvar seus ovos ou filhotes. Um industrial alemão chamado Schindler, horrorizado com o que estava acontecendo em seu país, usou seu dinheiro, sua influência e sua capacidade de argumentação para salvar dezenas de judeus dos “chuveiros”. Uma ursa se fecha em uma caverna onde passa todo o inverno sem se alimentar e de onde sai, na chegada da primavera, quase morta porque esteve todo esse tempo amamentando, protegendo e aquecendo seus filhotes. Deus não faz nada disso, mesmo sendo bondoso, imortal, onipotente, onisciente e onipresente.

Alguém me dirá então que a passarinha foi guiada por deus para assim agir e salvar seus filhotes, que deus “usou” Schindler para salvar aqueles judeus da morte, que foi deus quem deu forças à ursa para que ela pudesse alimentar seus filhotes até que chegasse a primavera e eles estivessem crescidos o suficiente para sair da toca e conhecer o mundo. Dirão que “não se moverá uma folha em uma árvore se deus assim não quiser”. TUDO que acontece, acontece porque deus quer, dirão.

Deus quer então que muitos filhotes e ovos de passarinho sejam encontrados e mortos pelas serpentes, por que salvar apenas alguns? Deus queria que milhões de pessoas fossem mortas nas câmaras de gás nazistas, por que salvar apenas alguns poucos? Deus queria que ursa e filhotes fossem atacados e mortos por predadores ou caçadores assim que saíssem da caverna no comecinho da primavera, por que então exigir tanto sacrifício da pobre mãe semimorta de desnutrição? Eu perdoaria deus por tudo isso se ele não fosse todo poderoso.

Sim, eu perdoaria deus pelos males que existem no mundo se ele não fosse tão poderoso quanto os religiosos dizem que ele é. Se ele tivesse criado o mundo porque não teve escolha e estando sujeito às diversas leis que obrigam os seres vivos a se matarem e se devorarem num banho de sangue eterno, então eu o perdoaria.

Se eu pudesse saber que deus não estava presente em alguns lugares e em alguns momentos da história porque ele não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, eu o perdoaria. Se eu soubesse que ele não tem como conhecer o que vai na cabeça e no coração de todas as pessoas e não tem como conhecer o futuro próximo ou distante e por isso não interfere na vida de pessoas animais ou plantas de forma a evitar grandes catástrofes, eu o perdoaria.

Se de alguma forma eu pudesse saber que no caso de calamidades de grandes proporções, causadas pela natureza ou pelos homens, deus não consegue salvar mais do que algumas vidas mesmo querendo e desejando muito salvar a todos e até evitar que a catástrofe aconteça, aí, sem dúvida nenhuma, eu o perdoaria.

E se eu soubesse que deus não tem como evitar que nasçam seres vivos, humanos ou não, com defeitos graves como aleijões, deformações genéticas ou deficiências mentais, e se ele não tivesse nenhum poder para evitar a existência de doenças graves como o câncer, a aids ou a velhice, com certeza nesse caso eu o perdoaria.

Verdade, se deus não fosse aquele ser tão poderoso, grandioso e incrível que durante a vida toda tentaram me fazer crer que ele é, não só eu poderia perdoá-lo como ainda teria muita pena, muitíssima pena dele.

15 de abril de 2020

PROVA DE INEXISTÊNCIA DO DEUS JUDAICO CRISTÃO


Todo ateu sabe que o crente é refratário a argumentos lógicos e que vai dizer que não provei nada, mesmo assim coloco aqui alguns exemplos de paradoxos que tornam deus um quadrado redondo e, portanto, inexistente:
Quadrado redondo um:

Supondo que existisse um Deus único, o Deus de Abraão, por que ele permitiria que o dividissem em três e que em seu nome se criasse e alimentasse tanta rivalidade? O Deus que os adeptos dos três deuses defendem é, para esses adeptos, único e verdadeiro. Para os adeptos de cada uma das três religiões, seu Deus não é o mesmo deus das outras duas, tanto que sua “palavra” é outra, embora os três livros tenham muitos pontos comuns e derivem da mesma raiz. Cada um desses três deuses – que é um único Deus mas que não é visto dessa forma – é descrito como bom; essa divisão, por todos os crimes que fomentou, é um dos maiores males da história da humanidade, não faz jus, portanto, ao que logicamente se esperaria de um Deus bom.

Quadrado redondo dois:

Os teístas afirmam que Deus criou o mundo, criou a vida, e que a maravilha da vida, por ela mesma, é prova da existência, do poder, da bondade e da perfeição de Deus. Eles apontam as belezas e a harmonia da natureza como provas da existência e da perfeição de Deus.

Mas o mundo também tem bastante desarmonia facilmente detectável; guerras são consequências de desarmonias na convivência entre pessoas e grupos de pessoas; muitas doenças são consequências de desarmonias no funcionamento do corpo vivo, de pessoas e de animais; os defeitos congênitos são consequências de desarmonias na concepção e na formação de novas vidas; muitos acidentes naturais são consequências de desarmonias da Terra, desarmonias climáticas, por exemplo. Portanto, a harmonia que há no mundo pode provar a existência dos opostos, não a existência de Deus.

Mais do que a harmonia e a desarmonia, o bem e o mal são os opostos que colocam a nossa compreensão de mundo em cheque. Embora sirva para maravilhar e espantar, embora sirva para deslumbrar e, muitas vezes, para fazer com que a vida, apesar de suas limitações, pareça ser realmente bela; toda a beleza apontada pelo teísta, diante da realidade do mal, deixa de ter validade como prova da existência – e até mesmo da possibilidade de existência – de um Deus criador, onipotente, perfeito e bom.

Quadrado redondo três:

Agostinho define o mal como sendo a ausência de Deus. Se concordarmos com esse raciocínio, caímos em uma armadilha lógica porque essa afirmação invalida a própria definição do Deus cuja existência Agostinho quer afirmar. Vejamos: O mal é a ausência do bem e Deus – o supremo bem – é onipresente. Acontece que se o mal, que é a ausência do bem, pode ser sentido em algum lugar, momento ou situação, então existe lugar, momento ou situação em que Deus não está presente. Se não está presente, Deus não pode ser onipresente.

A resposta do senso comum para essa questão é que Deus não fica onde não permitem sua permanência, ou seja, quando o homem nega Deus está usando de seu livre arbítrio e “fechando seu coração e sua casa para Deus”. Afirmam que, por ter lhe dado o livre arbítrio, Deus não fica com o homem se esse “fechar sua porta para Deus”. Só que depois – ameaçam – não podemos culpar Deus pelos males que entrarem em nosso lar porque foi escolha nossa não permitir a entrada de Deus em nossos domínios.

Esse argumento, embora à primeira vista pareça bastante válido, e sirva para convencer muitos fiéis, é fraco. Não importa a razão por que Deus não esteja num determinado lugar, o fato é que, logicamente, estão afirmando que existem lugares e momentos em que Deus não está presente; e se existem lugares e momentos em que Deus não está presente, Deus não é onipresente. Sem presença, sem onipresença.

A experiência tem mostrado diversas vezes que os males acontecem também para pessoas e em lugares que não estão e que não foram fechados para Deus; a destruição de igrejas e morte de fieis durante os cultos e orações nos terremotos de Lisboa e do Haiti são comprovações disso. Essa realidade parece mostrar que Deus, se existe, simplesmente não está em todos os lugares, ou porque não pode ou porque não quer. Se não está porque não quer, ele não é bom; se não está porque não pode, ele não é onipotente. Perdendo uma de suas características definidoras Deus perderia sua essência; perdendo duas, Deus, como é definido pelos teístas, deixaria de existir. Agostinho não prova a existência de Deus, pelo contrário, mata-o.

Quadrado redondo quatro:

Nenhum argumento teísta que se esforce por apontar o ser humano como responsável pela existência do mal conseguiria fazer isso se repensasse a existência da cadeia alimentar, se repensasse a existência do parasita que devora e mata não somente o homem, mas também os animais, e não somente desde que começamos a caminhar sobre esse chão e a conspurcá-lo com nossos pecados, mas também antes de existirmos como espécie.

Um Deus que consiga sequer imaginar a possibilidade de criar um mundo com uma base de equilíbrio biológico tão terrível quanto a cadeia alimentar se torna um Deus muito difícil de ser defendido até mesmo por novos adeptos de Leibniz. O melhor dos mundos possíveis, diante da visão realista do que é a cadeia alimentar, pode ser visto por qualquer um que defina o mal de forma não egoísta como um mundo tão terrível que certamente não teria sido criado por um Deus de bondade e de justiça.

Quadrado redondo cinco:

É da nossa natureza nos sentirmos diferentes da raça a que pertencemos, por isso a maioria de nós consegue ignorar a própria imperfeição, a própria mediocridade, a própria insignificância e pequenez e, olhando apenas pelo espelho da vaidade, aceitar sem reservas o absurdo de que esse ser que somos possa ser o ápice da criação de um Deus todo poder e todo bondade.

Reconhecer que somos a prova da não existência de Deus é um esforço que está acima da capacidade da maioria de nós. Se pudéssemos fazê-lo, apesar de tudo o que não conseguimos compreender, apesar de todas as maravilhas e de todos os “milagres”, saberíamos que este mundo em que vivemos não tem como ser criação de um Deus perfeito e bom; e mais, saberíamos que nós mesmos, como indivíduos e como raça, não temos como ser o ápice dessa criação e, menos ainda, o único e privilegiado objeto do amor desse criador. Se pudéssemos nos ver como somos, não poderíamos acreditar em Deus.

Resumindo:

Um Deus bom, se um Deus assim existisse, não criaria o mal e não permitiria que qualquer criatura sua, racional ou irracional, por qualquer que fosse a razão, soubesse ou sentisse o que é o mal, ou mesmo uma parte do mal. Um Deus bom que fosse onipotente certamente teria maneiras de ensinar e de evoluir sua criação sem usar para isso a arma do sofrimento imposto e inexplicável. Um Deus onipotente e justo jamais exigiria, ou toleraria, de qualquer de suas criações, essa adoração submissa, humilhante e muitas vezes até vergonhosa, tão comum entre os teístas das várias religiões do mundo e da história do mundo.

Deus, por ser onisciente saberia o que é o mal; por ser bom não criaria – a partir do nada – nem o mal nem outra coisa qualquer que pudesse gerar ou causar a existência do mal. Deus, por ser onipotente, poderia criar um mundo sem o mal ou a possibilidade do mal, ainda que conservando o tão valorizado livre-arbítrio, que os céticos não conseguem ver mas que os teístas afirmam e reafirmam com tanta ênfase.

A maior prova da impossibilidade da existência do Deus dos teístas é a impossibilidade de contestar o fato de que um Deus tão bom como esses mesmos teístas o definem jamais permitiria o mal, e menos ainda que esse mal perdurasse tanto tempo. Esse Deus Todo Bondade, se existisse, teria usado seu infinito poder para criar um mundo em que não houvesse possibilidade da existência do mal. Ou não teria criado nada.

Extraído do meu TCC do curso de pós graduação em Filosofia

10 de abril de 2020

INOCENTE


Então um dia nasceu um deus. Não era um deus lá muito poderoso, e para dizer a verdade nem mesmo era um deus: era uma deusa, e nem sequer sabia que era uma deusa. Ela só nasceu, como outra criança qualquer, e como outra criança qualquer começou a crescer, a aprender e apreender o mundo a partir de um momento e de algo que ninguém sabe explicar o que seja e se existe. Mas, no caso dela, se algo existia antes de tudo e antes de qualquer consciência era a consciência de que não deveria nunca contar a ninguém que era uma deusa.

A primeira mudança foi o resfriado e ela já andava um pouco e caia muito e já falava uma ou outra palavra razoavelmente compreensível quando essa mudança aconteceu. Talvez antes disso não soubesse que podia fazer algo, talvez ainda estivesse brincando de não ser uma deusa; os motivos; se existiram; não importa, o fato é que a mãe estava resfriada e ela achou que resfriado não servia pra nada e acabou não só com o resfriado da mãe, mas com o resfriado mesmo, fez com o resfriado o que um leigo não entende por que Cristo não fez com a lepra, se é verdade, como afirmam, que ele era o filho de Deus.

Mas não importa, ela não era a filha de Deus e nem era assim tão poderosa, era apenas uma deusa qualquer, com limitados poderes e limitados recursos; era uma criança e era uma mulher. Talvez por isso não se importasse de fazer o que podia no momento em que lhe ocorria fazê-lo, e sem alarde ou pedido de adoração. Então, ninguém sequer desconfiou que a erradicação do resfriado – e todas as outras coisas fantásticas que aconteceram depois – era coisa dela; nem poderiam desconfiar já que ela não dizia nada e era, em toda a aparência e em todas as atitudes, uma criança comum.

Bem, na verdade ela não era uma criança tão comum assim, um exemplo disso é que nunca ficou doente e nunca se machucou em uma queda ou brincadeira mais violenta; aliás, ela nunca participou de uma brincadeira mais violenta; além disso foi sempre e para sempre, sem que ninguém a ensinasse e antes de saber que existiam pessoas assim, vegetariana. Mesmo a família toda comendo carne com frequência e a mãe tendo como sua especialidade famosa um assado de vitela que fazia com que parentes e conhecidos mudassem planos para estar presentes nas datas especiais, como natal e páscoa, nunca ninguém conseguiu fazer com que ela comesse nenhum tipo de carne de qualquer animal que fosse; a mãe chegou a incrementar o famoso truque de cozinhar fígado com legumes e bater no liquidificador deixando legumes inteiros e triturando completamente a carne, mas o truque nunca funcionou. A pobre senhora tentou com carne vermelha, com frango, com peixe, com camarão, com carnes já prontas e já temperadas, com carnes exóticas e diferentes como rã e jacaré, com tudo que pode pensar e mais de uma vez, nunca funcionou.

Mesmo assim ela era considerada e vista por todos como uma criança normal porque as peculiaridades como não ficar doente, não se machucar, não disputar brinquedos, não comer carne; todas essas coisas e outras pequenas coisas que foram aparecendo, à medida que ela crescia eram vistas como marcas de sua personalidade ou eram coisas que a família atribuía à sorte, ao azar e à bondade de Deus.

O repentino desaparecimento do resfriado não deixou de causar muitos transtornos, mas as notícias sobre laboratórios farmacêuticos que “quebraram” e farmácias que fecharam suas portas, e mesmo as notícias que apresentavam os números dos desempregados do mundo, não chegaram a ser conhecidas por ela porque era pequena demais para ler jornais e para estar acordada na hora em que os pais assistem aos programas de televisão que dão notícias que crianças não precisam saber. Por isso as pessoas foram obrigadas a continuar se apoiando apenas em Deus e nelas mesmas, pedindo por um novo emprego ou conseguindo um por conta própria. A bem da verdade devo dizer que o segundo caso pareceu mais numeroso uma vez que foram muito poucas as pessoas que conseguiram outro emprego apelando apenas para a oração e sem fazer nenhum esforço.

Os cientistas foram os seres humanos mais intrigados e mais excitados do planeta; em todo o planeta; por conta do desaparecimento do resfriado; o que viram no final das contas foi que os vírus de resfriado continuavam existindo leves e faceiros como sempre existiram, ou como existiram desde que foram criados pelo bom Deus todo poderoso que criou todos os seres vivos porque só ele tem o poder de criar a vida; viram também que os vírus continuavam gostando da brincadeira de se reproduzir com mutações criando variações diversas deles mesmos, mas por alguma razão que eles – cientistas – não conseguiam determinar e que jamais pensariam ser uma menininha que ainda não sabia andar direito, os vírus simplesmente não causavam mais resfriado em ninguém. E, talvez porque ela – como a maioria de nós – não soubesse a diferença entre resfriado e gripe, junto com os resfriados as gripes desapareceram também; e por isso os espanhóis, as galinhas e os porcos foram deixados em paz, pelo menos no que diz respeito ao quesito nomear gripe.

Algum tempo depois teve o dia do susto. A família foi visitar os parentes; era a casa de uma tia e na casa tinha dois primos, ela os conhecia a todos porque eram visitas frequentes em sua casa, gostava da fala esganiçada e nervosa da tia, gostava do tom professoral do tio, embora ainda não soubesse que aquele tom poderia ser chamado de “professoral”, mas do que mais gostava era dos primos, um menino e uma menina e os dois pouco mais velhos que ela, eles brincavam juntos como toda criança brinca e as horas passavam rápidas como todas as horas passam quando as crianças brincam. Mas naquele dia o primo e a prima estavam na casa deles e discordaram sobre a propriedade de um brinquedo; o primo, por ser maior e abusando dessa vantagem, tirou o brinquedo da mão da prima e não pretendia devolvê-lo, a prima correu chorando para a sala onde os adultos conversavam, então a tia entrou no quarto e deu dois tapões no primo, dois tapões que para ela, criança que via e sentia, pareceram extremamente violentos e, para aumentar o susto, os tapões vieram acompanhados de palavras gritadas com fúria. Antes que o choro do primo pudesse ser percebido pelos que estavam na sala ela já estava agarrada ao pescoço da mãe e tremia assustada. Os adultos a consolaram, a tia se acalmou e riu para ela explicando que não estava com raiva dela, só do primo que não sabia brincar. Nenhum dos adultos e provavelmente nenhum dos primos teve nunca qualquer conhecimento ou suspeita de que foi naquele momento e por obra dela que todas as mães e todos os pais do planeta simplesmente deixaram de ver qualquer sentido no ato de bater em seus filhos, e qualquer irmão, por pequeno ou grande que fosse, deixou de ver qualquer sentido em se apossar do brinquedo do outro irmão.

Visitar parentes era sempre um aprendizado; o outro tio era enorme e ruivo, com sardas e o mais simpático dos sorrisos, era aquele que quando a pegava no colo a levantava mais alto, o tio que trazia balas e uma conversa alegre e que quando ia embora deixava todo o mundo mais contente; mas esse tio tinha em sua casa uma parede externa com uma fileira de gaiolas de passarinhos. Naquele dia em que foram visitá-lo ela foi até ele na esperança de ser levantada bem alto e o encontrou cuidando das gaiolas, perguntou o que fazia e ele explicou que tinha que limpar cada uma das gaiolas todos os dias, que tinha que trocar a água e o alpiste todos os dias porque se não o fizesse os passarinhos poderiam adoecer ou morrer. Ela ficou olhando as gaiolas, ficou olhando as avezinhas que saltavam de uma vareta a outra dentro de cada gaiola, ficou ouvindo a canção que alguns deles cantaram com seus biquinhos delicados, viu o tio dar beijinhos estalados em brincadeira com os passarinhos, mas não entendeu nada do significado de tudo aquilo e perguntou ao tio por que ele tinha tantos passarinhos em gaiolas, o tio respondeu que era porque gostava muito de passarinhos, gostava de vê-los e de ouvi-los, gostava de cuidar deles; e disse a frase que ela menos entendeu “Eu amo cada um deles”, então ela perguntou “Se o senhor gosta tanto deles, então porque deixa eles presos?”, o tio explicou que se não estivessem presos eles iriam embora e não cantariam mais, eles voariam e não saberiam viver sozinhos e com certeza morreriam.

O tio não soube e nunca se deu conta de que a menina tivesse qualquer coisa a ver com aquilo a não ser talvez o mérito de, com uma pergunta infantil, fazer com que repensasse seu amor pelas aves. O fato é que soltou todos os passarinhos assim que ela, vendo que não seria levantada bem alto agora, voltou para a cozinha atrás de outro pedaço de bolo. O desaparecimento de todas as gaiolas do mundo e o fechamento das tais “Lojas de aves” foi considerado como uma tomada de consciência coletiva, inexplicável por ter sido tão geral e tão repentina, mas, porque todos se sentiram bem com isso, poucos se deram ao trabalho de tentar explicar, ou entender, o que aconteceu e a ninguém, como sempre, ocorreu a hipótese de que a causa era uma menina que há pouco tempo aprendeu a andar.

E teve o dia em que ela aprendeu a ler porque o pai trouxe um jornal pra casa com a manchete de mais uma ameaça de guerra no Oriente Médio, ela viu o pai com o jornal aberto sobre a mesa da cozinha e perguntou o que estava fazendo, ele explicou que estava lendo e ela quis saber o que é ler, então ele, porque apesar da ameaça de guerra, ou pela banalidade da ameaça de guerra, ou pela distância de onde vinha a ameaça de guerra, estava de bom humor, explicou que ler era decifrar aqueles símbolos, que eram letras e que formavam palavras, ela quis ver e ele mostrou, explicou de novo e ela entendeu e quando entendeu pôde ler e viu a ameaça de guerra no Oriente Médio, mas ficou quieta e não falou nada porque se ela teve alguma coisa que os filósofos poderiam chamar de “a priori” esta era a consciência de que nem tudo pode ser dito.

Saiu de perto do pai para que ele lesse e voltou a pegar o jornal mais tarde, sem abri-lo em todas as páginas, mas brincando que brincava que sabia ler imitando o pai abriu na página que explicava resumidamente a história do mar vermelho de sangue que desde sempre banhou aquela parte do mundo. O jornal do dia seguinte vendeu bem mais e as notícias que continham foram comentadas durante muitos dias em todos os lugares onde pessoas se encontravam. Por algum motivo jamais desvendado, jamais compreendido e logicamente jamais atribuído a uma menina que ainda não tinha assoprado três velinhas os homens envolvidos nas guerras de tanto tempo e de tantos mortos resolveram que era hora de viver em paz.

Foram muitas armas depostas, muitas bombas não explodiram, muita munição fabricada não saiu dos estoques das fábricas que fomentam guerras pela ideologia do maior lucro. Mais desempregados e menos mortos, mais diálogos e menos mutilações, mais trabalho, muito mais trabalho na reconstrução de algo que dessa vez aparentemente não seria destruído. Esse foi o principal assunto em cada bar e em cada esquina, em cada jornal e em cada revista por muitos dias, até quando o foco das atenções se virou para as tentativas de explicação das mudanças, agora tantas e tão drásticas, que vinham acontecendo pelo mundo quase todos os dias. Crescia a lista de doenças que desapareciam do mesmo jeito que a gripe desapareceu; e junto com as doenças deixavam de existir os defeitos congênitos e as debilidades patogênicas; não havia mais anemia, osteoporose, diabetes, asma, síndrome de down, mal de Alzheimer, catarata; desapareciam todas as doenças que apareciam citadas em alguma manchete de jornal ou revista que ficasse exposta em alguma banca de jornal que estivesse no caminho num determinado dia em que ela saia de casa para passear com a mãe ou o pai; desaparecia qualquer doença que um conhecido da mãe ou do pai tivesse e cujo caso fosse citado na sala ou na mesa de jantar numa hora em que todos juravam que ela estava distraída demais com os brinquedos para ouvir a conversa. E, de repente, a gravidez passou a ser voluntária e ninguém mais foi surpreendido com um filho não planejado graças a uma conhecida de sua mãe que engravidou sem querer e estava tensa por conta das mudanças que esse inesperado filho causaria em sua vida.

Os cultos evangélicos perderam muito de seu apelo porque não era mais possível encontrar alguém com uma doença grave ou uma deficiência qualquer que justificasse fazer essa pessoa passar por uma sessão de “milagre de Jesus” como aquelas que acontecem com tanta frequência e que trazem tantos benefícios para a coleção de carros importados dos pastores mais bem sucedidos. Doenças e defeitos de nascimento foram migrando dos relatórios de plantão médico para os livros de história com uma rapidez tão grande que as pessoas tinham dificuldade para acompanhar essa transmigração e teria havido um caos muito grande se não fosse pela estranha disposição à boa vontade que tomou conta das pessoas e pelas mudanças do clima que fizeram aumentar a níveis jamais vistos a produtividade da terra.

Ninguém entendia mas todos estavam eufóricos, os mais passivos aproveitavam os bons ventos para viverem horas e dias de deslumbramento lotando as igrejas e templos onde iam agradecer a Deus sem lembrar de perguntar por que Ele não fez isso antes, ou lotavam bares, parques, praias e praças para brindarem e brincarem de finalmente viver bem; os mais inquietos e questionadores pensavam e produziam; saiam livros, músicas, filmes e nos laboratórios não descansavam as pipetas e os tubos de ensaio. O mundo parava para apreciar as mudanças tão bem vindas e o mundo se agitava para entender quais eram e por que eram essas mudanças; os primeiros, como sempre, eram mais bem sucedidos.

Ninguém associou as mudanças milagrosas às notícias de jornal porque ninguém sabia que ela sabia ler, aliás, como fato e como realidade ninguém sabia sequer de sua existência, e mesmo os pais não podiam associar nenhum acontecimento à sua filha que não conheciam e não reconheciam como deusa porque ela não via jornais todos os dias e nunca dava mostras de ter lido a manchete ao passar pela mão da mãe na frente de uma banca de jornal e ninguém sabia das vezes em que ela poderia ter ouvido o repórter da televisão dizer a notícia enquanto passava pela sala, semiadormecida, nos braços do pai ou da mãe.

Algumas coisas causavam danos por serem consertadas na ordem inversa do que talvez fosse mais lógico, a culpa era das notícias de jornal; por exemplo, um cachorro criado para atacar qualquer estranho que visse, viu como estranha uma criança cuja morte foi manchete de primeira página em um tabloide sensacionalista que ela viu exposto na banca de jornal; por conta disso os cachorros não mais morderam pessoas e se tornaram guardas quase inúteis colaborando para o aumento dos casos de roubos a residências, e esse aumento foi notícia alguns dias depois de os cachorros pararem de morder gente, só então as pessoas pararam de roubar. O roubo foi extinto como uma doença e ninguém mais foi assaltado, teve sua casa invadida ou sua carteira furtada; ninguém sentiu falta do roubo, nem mesmo os ladrões.

As mudanças climáticas, a calma da terra e a paz dos vulcões tiveram mais impacto do que o desaparecimento das doenças. Não mais terremotos depois de um terremoto que causou muitas mortes no México, não mais erupções vulcânicas depois de uma erupção que causou a remoção da população e a mudança da paisagem de uma ilha do pacífico, não mais enchentes depois de uma chuva que deixou desabrigados na índia, não mais furacões depois de um tornado que abriu um caminho entre casas e árvores em uma paisagem de cartão postal nos Estados Unidos, não mais nevascas depois de uma queda de temperatura que causou transtornos na suíça e não mais períodos de seca depois de um inverno que aumentou o nível de pobreza no nordeste do Brasil.

E as catástrofes terríveis anunciadas desde séculos antes do nascimento dela foram acontecendo de uma forma tal que não puderam ser consideradas catástrofes; subia o nível do mar e as pessoas que moravam nos lugares mais baixos, não importa o valor de suas mansões ou a simplicidade de seus barracões de caiçara, tiveram que se mudar para terras mais altas, em compensação as chuvas começaram a cair mais onde eram mais raras e as terras mais desertas começaram a produzir. A temperatura baixou no equador e subiu nos polos e muitas terras férteis foram reveladas pelo derretimento de camadas de gelo que não conheciam o estado líquido há milênios, a face do planeta mudou, e mudou rapidamente, e mudou para melhor a ponto de poder abrigar e alimentar mais gente; só que, graças ao fato de a gravidez ser voluntária, nem sequer tinha mais gente.

Tudo era surpresa e espanto e todos queriam saber qual era o deus responsável por tão drásticas mudanças, cada religião atribuía o milagre a seu deus sem querer saber e sem poder imaginar que a responsável por tudo era uma menina que lia jornais em segredo e que estava ansiando pelo seu primeiro dia na escola. Nunca se falou em “fase de transição” com tanta verdade quanto se fez naquele período; o planeta mudava, o cotidiano mudava, a economia e a política mudavam, mudava a alma dos homens.

E quando finalmente ela pôde estrear sua mochila cor de rosa, embarcar pela primeira vez na perua escolar e conhecer sua primeira professora o mundo já era um lugar onde uma deusa podia viver. Precisava apenas de alguns pequenos ajustes, que ela faria certamente à medida que, crescendo, aprendendo e apreendendo, ela pudesse perceber que eram necessários; para isso teria todos os 248 anos de sua vida, ao fim dos quais resolveria morrer, deixando então um mundo sem guerras, sem velhice, sem doenças e sem injustiça que, a partir daquele tempo, se tornaria também um mundo sem deuses que jamais soube ter abrigado uma deusa.