10 de abril de 2020

INOCENTE


Então um dia nasceu um deus. Não era um deus lá muito poderoso, e para dizer a verdade nem mesmo era um deus: era uma deusa, e nem sequer sabia que era uma deusa. Ela só nasceu, como outra criança qualquer, e como outra criança qualquer começou a crescer, a aprender e apreender o mundo a partir de um momento e de algo que ninguém sabe explicar o que seja e se existe. Mas, no caso dela, se algo existia antes de tudo e antes de qualquer consciência era a consciência de que não deveria nunca contar a ninguém que era uma deusa.

A primeira mudança foi o resfriado e ela já andava um pouco e caia muito e já falava uma ou outra palavra razoavelmente compreensível quando essa mudança aconteceu. Talvez antes disso não soubesse que podia fazer algo, talvez ainda estivesse brincando de não ser uma deusa; os motivos; se existiram; não importa, o fato é que a mãe estava resfriada e ela achou que resfriado não servia pra nada e acabou não só com o resfriado da mãe, mas com o resfriado mesmo, fez com o resfriado o que um leigo não entende por que Cristo não fez com a lepra, se é verdade, como afirmam, que ele era o filho de Deus.

Mas não importa, ela não era a filha de Deus e nem era assim tão poderosa, era apenas uma deusa qualquer, com limitados poderes e limitados recursos; era uma criança e era uma mulher. Talvez por isso não se importasse de fazer o que podia no momento em que lhe ocorria fazê-lo, e sem alarde ou pedido de adoração. Então, ninguém sequer desconfiou que a erradicação do resfriado – e todas as outras coisas fantásticas que aconteceram depois – era coisa dela; nem poderiam desconfiar já que ela não dizia nada e era, em toda a aparência e em todas as atitudes, uma criança comum.

Bem, na verdade ela não era uma criança tão comum assim, um exemplo disso é que nunca ficou doente e nunca se machucou em uma queda ou brincadeira mais violenta; aliás, ela nunca participou de uma brincadeira mais violenta; além disso foi sempre e para sempre, sem que ninguém a ensinasse e antes de saber que existiam pessoas assim, vegetariana. Mesmo a família toda comendo carne com frequência e a mãe tendo como sua especialidade famosa um assado de vitela que fazia com que parentes e conhecidos mudassem planos para estar presentes nas datas especiais, como natal e páscoa, nunca ninguém conseguiu fazer com que ela comesse nenhum tipo de carne de qualquer animal que fosse; a mãe chegou a incrementar o famoso truque de cozinhar fígado com legumes e bater no liquidificador deixando legumes inteiros e triturando completamente a carne, mas o truque nunca funcionou. A pobre senhora tentou com carne vermelha, com frango, com peixe, com camarão, com carnes já prontas e já temperadas, com carnes exóticas e diferentes como rã e jacaré, com tudo que pode pensar e mais de uma vez, nunca funcionou.

Mesmo assim ela era considerada e vista por todos como uma criança normal porque as peculiaridades como não ficar doente, não se machucar, não disputar brinquedos, não comer carne; todas essas coisas e outras pequenas coisas que foram aparecendo, à medida que ela crescia eram vistas como marcas de sua personalidade ou eram coisas que a família atribuía à sorte, ao azar e à bondade de Deus.

O repentino desaparecimento do resfriado não deixou de causar muitos transtornos, mas as notícias sobre laboratórios farmacêuticos que “quebraram” e farmácias que fecharam suas portas, e mesmo as notícias que apresentavam os números dos desempregados do mundo, não chegaram a ser conhecidas por ela porque era pequena demais para ler jornais e para estar acordada na hora em que os pais assistem aos programas de televisão que dão notícias que crianças não precisam saber. Por isso as pessoas foram obrigadas a continuar se apoiando apenas em Deus e nelas mesmas, pedindo por um novo emprego ou conseguindo um por conta própria. A bem da verdade devo dizer que o segundo caso pareceu mais numeroso uma vez que foram muito poucas as pessoas que conseguiram outro emprego apelando apenas para a oração e sem fazer nenhum esforço.

Os cientistas foram os seres humanos mais intrigados e mais excitados do planeta; em todo o planeta; por conta do desaparecimento do resfriado; o que viram no final das contas foi que os vírus de resfriado continuavam existindo leves e faceiros como sempre existiram, ou como existiram desde que foram criados pelo bom Deus todo poderoso que criou todos os seres vivos porque só ele tem o poder de criar a vida; viram também que os vírus continuavam gostando da brincadeira de se reproduzir com mutações criando variações diversas deles mesmos, mas por alguma razão que eles – cientistas – não conseguiam determinar e que jamais pensariam ser uma menininha que ainda não sabia andar direito, os vírus simplesmente não causavam mais resfriado em ninguém. E, talvez porque ela – como a maioria de nós – não soubesse a diferença entre resfriado e gripe, junto com os resfriados as gripes desapareceram também; e por isso os espanhóis, as galinhas e os porcos foram deixados em paz, pelo menos no que diz respeito ao quesito nomear gripe.

Algum tempo depois teve o dia do susto. A família foi visitar os parentes; era a casa de uma tia e na casa tinha dois primos, ela os conhecia a todos porque eram visitas frequentes em sua casa, gostava da fala esganiçada e nervosa da tia, gostava do tom professoral do tio, embora ainda não soubesse que aquele tom poderia ser chamado de “professoral”, mas do que mais gostava era dos primos, um menino e uma menina e os dois pouco mais velhos que ela, eles brincavam juntos como toda criança brinca e as horas passavam rápidas como todas as horas passam quando as crianças brincam. Mas naquele dia o primo e a prima estavam na casa deles e discordaram sobre a propriedade de um brinquedo; o primo, por ser maior e abusando dessa vantagem, tirou o brinquedo da mão da prima e não pretendia devolvê-lo, a prima correu chorando para a sala onde os adultos conversavam, então a tia entrou no quarto e deu dois tapões no primo, dois tapões que para ela, criança que via e sentia, pareceram extremamente violentos e, para aumentar o susto, os tapões vieram acompanhados de palavras gritadas com fúria. Antes que o choro do primo pudesse ser percebido pelos que estavam na sala ela já estava agarrada ao pescoço da mãe e tremia assustada. Os adultos a consolaram, a tia se acalmou e riu para ela explicando que não estava com raiva dela, só do primo que não sabia brincar. Nenhum dos adultos e provavelmente nenhum dos primos teve nunca qualquer conhecimento ou suspeita de que foi naquele momento e por obra dela que todas as mães e todos os pais do planeta simplesmente deixaram de ver qualquer sentido no ato de bater em seus filhos, e qualquer irmão, por pequeno ou grande que fosse, deixou de ver qualquer sentido em se apossar do brinquedo do outro irmão.

Visitar parentes era sempre um aprendizado; o outro tio era enorme e ruivo, com sardas e o mais simpático dos sorrisos, era aquele que quando a pegava no colo a levantava mais alto, o tio que trazia balas e uma conversa alegre e que quando ia embora deixava todo o mundo mais contente; mas esse tio tinha em sua casa uma parede externa com uma fileira de gaiolas de passarinhos. Naquele dia em que foram visitá-lo ela foi até ele na esperança de ser levantada bem alto e o encontrou cuidando das gaiolas, perguntou o que fazia e ele explicou que tinha que limpar cada uma das gaiolas todos os dias, que tinha que trocar a água e o alpiste todos os dias porque se não o fizesse os passarinhos poderiam adoecer ou morrer. Ela ficou olhando as gaiolas, ficou olhando as avezinhas que saltavam de uma vareta a outra dentro de cada gaiola, ficou ouvindo a canção que alguns deles cantaram com seus biquinhos delicados, viu o tio dar beijinhos estalados em brincadeira com os passarinhos, mas não entendeu nada do significado de tudo aquilo e perguntou ao tio por que ele tinha tantos passarinhos em gaiolas, o tio respondeu que era porque gostava muito de passarinhos, gostava de vê-los e de ouvi-los, gostava de cuidar deles; e disse a frase que ela menos entendeu “Eu amo cada um deles”, então ela perguntou “Se o senhor gosta tanto deles, então porque deixa eles presos?”, o tio explicou que se não estivessem presos eles iriam embora e não cantariam mais, eles voariam e não saberiam viver sozinhos e com certeza morreriam.

O tio não soube e nunca se deu conta de que a menina tivesse qualquer coisa a ver com aquilo a não ser talvez o mérito de, com uma pergunta infantil, fazer com que repensasse seu amor pelas aves. O fato é que soltou todos os passarinhos assim que ela, vendo que não seria levantada bem alto agora, voltou para a cozinha atrás de outro pedaço de bolo. O desaparecimento de todas as gaiolas do mundo e o fechamento das tais “Lojas de aves” foi considerado como uma tomada de consciência coletiva, inexplicável por ter sido tão geral e tão repentina, mas, porque todos se sentiram bem com isso, poucos se deram ao trabalho de tentar explicar, ou entender, o que aconteceu e a ninguém, como sempre, ocorreu a hipótese de que a causa era uma menina que há pouco tempo aprendeu a andar.

E teve o dia em que ela aprendeu a ler porque o pai trouxe um jornal pra casa com a manchete de mais uma ameaça de guerra no Oriente Médio, ela viu o pai com o jornal aberto sobre a mesa da cozinha e perguntou o que estava fazendo, ele explicou que estava lendo e ela quis saber o que é ler, então ele, porque apesar da ameaça de guerra, ou pela banalidade da ameaça de guerra, ou pela distância de onde vinha a ameaça de guerra, estava de bom humor, explicou que ler era decifrar aqueles símbolos, que eram letras e que formavam palavras, ela quis ver e ele mostrou, explicou de novo e ela entendeu e quando entendeu pôde ler e viu a ameaça de guerra no Oriente Médio, mas ficou quieta e não falou nada porque se ela teve alguma coisa que os filósofos poderiam chamar de “a priori” esta era a consciência de que nem tudo pode ser dito.

Saiu de perto do pai para que ele lesse e voltou a pegar o jornal mais tarde, sem abri-lo em todas as páginas, mas brincando que brincava que sabia ler imitando o pai abriu na página que explicava resumidamente a história do mar vermelho de sangue que desde sempre banhou aquela parte do mundo. O jornal do dia seguinte vendeu bem mais e as notícias que continham foram comentadas durante muitos dias em todos os lugares onde pessoas se encontravam. Por algum motivo jamais desvendado, jamais compreendido e logicamente jamais atribuído a uma menina que ainda não tinha assoprado três velinhas os homens envolvidos nas guerras de tanto tempo e de tantos mortos resolveram que era hora de viver em paz.

Foram muitas armas depostas, muitas bombas não explodiram, muita munição fabricada não saiu dos estoques das fábricas que fomentam guerras pela ideologia do maior lucro. Mais desempregados e menos mortos, mais diálogos e menos mutilações, mais trabalho, muito mais trabalho na reconstrução de algo que dessa vez aparentemente não seria destruído. Esse foi o principal assunto em cada bar e em cada esquina, em cada jornal e em cada revista por muitos dias, até quando o foco das atenções se virou para as tentativas de explicação das mudanças, agora tantas e tão drásticas, que vinham acontecendo pelo mundo quase todos os dias. Crescia a lista de doenças que desapareciam do mesmo jeito que a gripe desapareceu; e junto com as doenças deixavam de existir os defeitos congênitos e as debilidades patogênicas; não havia mais anemia, osteoporose, diabetes, asma, síndrome de down, mal de Alzheimer, catarata; desapareciam todas as doenças que apareciam citadas em alguma manchete de jornal ou revista que ficasse exposta em alguma banca de jornal que estivesse no caminho num determinado dia em que ela saia de casa para passear com a mãe ou o pai; desaparecia qualquer doença que um conhecido da mãe ou do pai tivesse e cujo caso fosse citado na sala ou na mesa de jantar numa hora em que todos juravam que ela estava distraída demais com os brinquedos para ouvir a conversa. E, de repente, a gravidez passou a ser voluntária e ninguém mais foi surpreendido com um filho não planejado graças a uma conhecida de sua mãe que engravidou sem querer e estava tensa por conta das mudanças que esse inesperado filho causaria em sua vida.

Os cultos evangélicos perderam muito de seu apelo porque não era mais possível encontrar alguém com uma doença grave ou uma deficiência qualquer que justificasse fazer essa pessoa passar por uma sessão de “milagre de Jesus” como aquelas que acontecem com tanta frequência e que trazem tantos benefícios para a coleção de carros importados dos pastores mais bem sucedidos. Doenças e defeitos de nascimento foram migrando dos relatórios de plantão médico para os livros de história com uma rapidez tão grande que as pessoas tinham dificuldade para acompanhar essa transmigração e teria havido um caos muito grande se não fosse pela estranha disposição à boa vontade que tomou conta das pessoas e pelas mudanças do clima que fizeram aumentar a níveis jamais vistos a produtividade da terra.

Ninguém entendia mas todos estavam eufóricos, os mais passivos aproveitavam os bons ventos para viverem horas e dias de deslumbramento lotando as igrejas e templos onde iam agradecer a Deus sem lembrar de perguntar por que Ele não fez isso antes, ou lotavam bares, parques, praias e praças para brindarem e brincarem de finalmente viver bem; os mais inquietos e questionadores pensavam e produziam; saiam livros, músicas, filmes e nos laboratórios não descansavam as pipetas e os tubos de ensaio. O mundo parava para apreciar as mudanças tão bem vindas e o mundo se agitava para entender quais eram e por que eram essas mudanças; os primeiros, como sempre, eram mais bem sucedidos.

Ninguém associou as mudanças milagrosas às notícias de jornal porque ninguém sabia que ela sabia ler, aliás, como fato e como realidade ninguém sabia sequer de sua existência, e mesmo os pais não podiam associar nenhum acontecimento à sua filha que não conheciam e não reconheciam como deusa porque ela não via jornais todos os dias e nunca dava mostras de ter lido a manchete ao passar pela mão da mãe na frente de uma banca de jornal e ninguém sabia das vezes em que ela poderia ter ouvido o repórter da televisão dizer a notícia enquanto passava pela sala, semiadormecida, nos braços do pai ou da mãe.

Algumas coisas causavam danos por serem consertadas na ordem inversa do que talvez fosse mais lógico, a culpa era das notícias de jornal; por exemplo, um cachorro criado para atacar qualquer estranho que visse, viu como estranha uma criança cuja morte foi manchete de primeira página em um tabloide sensacionalista que ela viu exposto na banca de jornal; por conta disso os cachorros não mais morderam pessoas e se tornaram guardas quase inúteis colaborando para o aumento dos casos de roubos a residências, e esse aumento foi notícia alguns dias depois de os cachorros pararem de morder gente, só então as pessoas pararam de roubar. O roubo foi extinto como uma doença e ninguém mais foi assaltado, teve sua casa invadida ou sua carteira furtada; ninguém sentiu falta do roubo, nem mesmo os ladrões.

As mudanças climáticas, a calma da terra e a paz dos vulcões tiveram mais impacto do que o desaparecimento das doenças. Não mais terremotos depois de um terremoto que causou muitas mortes no México, não mais erupções vulcânicas depois de uma erupção que causou a remoção da população e a mudança da paisagem de uma ilha do pacífico, não mais enchentes depois de uma chuva que deixou desabrigados na índia, não mais furacões depois de um tornado que abriu um caminho entre casas e árvores em uma paisagem de cartão postal nos Estados Unidos, não mais nevascas depois de uma queda de temperatura que causou transtornos na suíça e não mais períodos de seca depois de um inverno que aumentou o nível de pobreza no nordeste do Brasil.

E as catástrofes terríveis anunciadas desde séculos antes do nascimento dela foram acontecendo de uma forma tal que não puderam ser consideradas catástrofes; subia o nível do mar e as pessoas que moravam nos lugares mais baixos, não importa o valor de suas mansões ou a simplicidade de seus barracões de caiçara, tiveram que se mudar para terras mais altas, em compensação as chuvas começaram a cair mais onde eram mais raras e as terras mais desertas começaram a produzir. A temperatura baixou no equador e subiu nos polos e muitas terras férteis foram reveladas pelo derretimento de camadas de gelo que não conheciam o estado líquido há milênios, a face do planeta mudou, e mudou rapidamente, e mudou para melhor a ponto de poder abrigar e alimentar mais gente; só que, graças ao fato de a gravidez ser voluntária, nem sequer tinha mais gente.

Tudo era surpresa e espanto e todos queriam saber qual era o deus responsável por tão drásticas mudanças, cada religião atribuía o milagre a seu deus sem querer saber e sem poder imaginar que a responsável por tudo era uma menina que lia jornais em segredo e que estava ansiando pelo seu primeiro dia na escola. Nunca se falou em “fase de transição” com tanta verdade quanto se fez naquele período; o planeta mudava, o cotidiano mudava, a economia e a política mudavam, mudava a alma dos homens.

E quando finalmente ela pôde estrear sua mochila cor de rosa, embarcar pela primeira vez na perua escolar e conhecer sua primeira professora o mundo já era um lugar onde uma deusa podia viver. Precisava apenas de alguns pequenos ajustes, que ela faria certamente à medida que, crescendo, aprendendo e apreendendo, ela pudesse perceber que eram necessários; para isso teria todos os 248 anos de sua vida, ao fim dos quais resolveria morrer, deixando então um mundo sem guerras, sem velhice, sem doenças e sem injustiça que, a partir daquele tempo, se tornaria também um mundo sem deuses que jamais soube ter abrigado uma deusa.

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