Então um dia nasceu um
deus. Não era um deus lá muito poderoso, e para dizer a verdade nem mesmo era
um deus: era uma deusa, e nem sequer sabia que era uma deusa. Ela só nasceu, como
outra criança qualquer, e como outra criança qualquer começou a crescer, a
aprender e apreender o mundo a partir de um momento e de algo que ninguém sabe
explicar o que seja e se existe. Mas, no caso dela, se algo existia antes de
tudo e antes de qualquer consciência era a consciência de que não deveria nunca
contar a ninguém que era uma deusa.
A primeira mudança foi o
resfriado e ela já andava um pouco e caia muito e já falava uma ou outra
palavra razoavelmente compreensível quando essa mudança aconteceu. Talvez antes
disso não soubesse que podia fazer algo, talvez ainda estivesse brincando de
não ser uma deusa; os motivos; se existiram; não importa, o fato é que a mãe
estava resfriada e ela achou que resfriado não servia pra nada e acabou não só
com o resfriado da mãe, mas com o resfriado mesmo, fez com o resfriado o que um
leigo não entende por que Cristo não fez com a lepra, se é verdade, como
afirmam, que ele era o filho de Deus.
Mas não importa, ela não
era a filha de Deus e nem era assim tão poderosa, era apenas uma deusa
qualquer, com limitados poderes e limitados recursos; era uma criança e era uma
mulher. Talvez por isso não se importasse de fazer o que podia no momento em
que lhe ocorria fazê-lo, e sem alarde ou pedido de adoração. Então, ninguém sequer
desconfiou que a erradicação do resfriado – e todas as outras coisas
fantásticas que aconteceram depois – era coisa dela; nem poderiam desconfiar já
que ela não dizia nada e era, em toda a aparência e em todas as atitudes, uma
criança comum.
Bem, na verdade ela não
era uma criança tão comum assim, um exemplo disso é que nunca ficou doente e
nunca se machucou em uma queda ou brincadeira mais violenta; aliás, ela nunca
participou de uma brincadeira mais violenta; além disso foi sempre e para sempre,
sem que ninguém a ensinasse e antes de saber que existiam pessoas assim,
vegetariana. Mesmo a família toda comendo carne com frequência e a mãe tendo
como sua especialidade famosa um assado de vitela que fazia com que parentes e
conhecidos mudassem planos para estar presentes nas datas especiais, como natal
e páscoa, nunca ninguém conseguiu fazer com que ela comesse nenhum tipo de
carne de qualquer animal que fosse; a mãe chegou a incrementar o famoso truque
de cozinhar fígado com legumes e bater no liquidificador deixando legumes
inteiros e triturando completamente a carne, mas o truque nunca funcionou. A
pobre senhora tentou com carne vermelha, com frango, com peixe, com camarão,
com carnes já prontas e já temperadas, com carnes exóticas e diferentes como rã
e jacaré, com tudo que pode pensar e mais de uma vez, nunca funcionou.
Mesmo assim ela era
considerada e vista por todos como uma criança normal porque as peculiaridades
como não ficar doente, não se machucar, não disputar brinquedos, não comer carne;
todas essas coisas e outras pequenas coisas que foram aparecendo, à medida que
ela crescia eram vistas como marcas de sua personalidade ou eram coisas que a
família atribuía à sorte, ao azar e à bondade de Deus.
O repentino
desaparecimento do resfriado não deixou de causar muitos transtornos, mas as
notícias sobre laboratórios farmacêuticos que “quebraram” e farmácias que
fecharam suas portas, e mesmo as notícias que apresentavam os números dos
desempregados do mundo, não chegaram a ser conhecidas por ela porque era
pequena demais para ler jornais e para estar acordada na hora em que os pais
assistem aos programas de televisão que dão notícias que crianças não precisam
saber. Por isso as pessoas foram obrigadas a continuar se apoiando apenas em
Deus e nelas mesmas, pedindo por um novo emprego ou conseguindo um por conta
própria. A bem da verdade devo dizer que o segundo caso pareceu mais numeroso
uma vez que foram muito poucas as pessoas que conseguiram outro emprego
apelando apenas para a oração e sem fazer nenhum esforço.
Os cientistas foram os
seres humanos mais intrigados e mais excitados do planeta; em todo o planeta;
por conta do desaparecimento do resfriado; o que viram no final das contas foi
que os vírus de resfriado continuavam existindo leves e faceiros como sempre
existiram, ou como existiram desde que foram criados pelo bom Deus todo
poderoso que criou todos os seres vivos porque só ele tem o poder de criar a
vida; viram também que os vírus continuavam gostando da brincadeira de se
reproduzir com mutações criando variações diversas deles mesmos, mas por alguma
razão que eles – cientistas – não conseguiam determinar e que jamais pensariam
ser uma menininha que ainda não sabia andar direito, os vírus simplesmente não
causavam mais resfriado em ninguém. E, talvez porque ela – como a maioria de
nós – não soubesse a diferença entre resfriado e gripe, junto com os resfriados
as gripes desapareceram também; e por isso os espanhóis, as galinhas e os
porcos foram deixados em paz, pelo menos no que diz respeito ao quesito nomear
gripe.
Algum tempo depois teve o
dia do susto. A família foi visitar os parentes; era a casa de uma tia e na
casa tinha dois primos, ela os conhecia a todos porque eram visitas frequentes
em sua casa, gostava da fala esganiçada e nervosa da tia, gostava do tom
professoral do tio, embora ainda não soubesse que aquele tom poderia ser
chamado de “professoral”, mas do que mais gostava era dos primos, um menino e
uma menina e os dois pouco mais velhos que ela, eles brincavam juntos como toda
criança brinca e as horas passavam rápidas como todas as horas passam quando as
crianças brincam. Mas naquele dia o primo e a prima estavam na casa deles e
discordaram sobre a propriedade de um brinquedo; o primo, por ser maior e
abusando dessa vantagem, tirou o brinquedo da mão da prima e não pretendia devolvê-lo,
a prima correu chorando para a sala onde os adultos conversavam, então a tia
entrou no quarto e deu dois tapões no primo, dois tapões que para ela, criança
que via e sentia, pareceram extremamente violentos e, para aumentar o susto, os
tapões vieram acompanhados de palavras gritadas com fúria. Antes que o choro do
primo pudesse ser percebido pelos que estavam na sala ela já estava agarrada ao
pescoço da mãe e tremia assustada. Os adultos a consolaram, a tia se acalmou e
riu para ela explicando que não estava com raiva dela, só do primo que não
sabia brincar. Nenhum dos adultos e provavelmente nenhum dos primos teve nunca
qualquer conhecimento ou suspeita de que foi naquele momento e por obra dela
que todas as mães e todos os pais do planeta simplesmente deixaram de ver
qualquer sentido no ato de bater em seus filhos, e qualquer irmão, por pequeno
ou grande que fosse, deixou de ver qualquer sentido em se apossar do brinquedo
do outro irmão.
Visitar parentes era
sempre um aprendizado; o outro tio era enorme e ruivo, com sardas e o mais
simpático dos sorrisos, era aquele que quando a pegava no colo a levantava mais
alto, o tio que trazia balas e uma conversa alegre e que quando ia embora
deixava todo o mundo mais contente; mas esse tio tinha em sua casa uma parede
externa com uma fileira de gaiolas de passarinhos. Naquele dia em que foram
visitá-lo ela foi até ele na esperança de ser levantada bem alto e o encontrou
cuidando das gaiolas, perguntou o que fazia e ele explicou que tinha que limpar
cada uma das gaiolas todos os dias, que tinha que trocar a água e o alpiste
todos os dias porque se não o fizesse os passarinhos poderiam adoecer ou
morrer. Ela ficou olhando as gaiolas, ficou olhando as avezinhas que saltavam
de uma vareta a outra dentro de cada gaiola, ficou ouvindo a canção que alguns
deles cantaram com seus biquinhos delicados, viu o tio dar beijinhos estalados
em brincadeira com os passarinhos, mas não entendeu nada do significado de tudo
aquilo e perguntou ao tio por que ele tinha tantos passarinhos em gaiolas, o
tio respondeu que era porque gostava muito de passarinhos, gostava de vê-los e
de ouvi-los, gostava de cuidar deles; e disse a frase que ela menos entendeu
“Eu amo cada um deles”, então ela perguntou “Se o senhor gosta tanto deles, então
porque deixa eles presos?”, o tio explicou que se não estivessem presos eles
iriam embora e não cantariam mais, eles voariam e não saberiam viver sozinhos e
com certeza morreriam.
O tio não soube e nunca
se deu conta de que a menina tivesse qualquer coisa a ver com aquilo a não ser
talvez o mérito de, com uma pergunta infantil, fazer com que repensasse seu
amor pelas aves. O fato é que soltou todos os passarinhos assim que ela, vendo
que não seria levantada bem alto agora, voltou para a cozinha atrás de outro pedaço
de bolo. O desaparecimento de todas as gaiolas do mundo e o fechamento das tais
“Lojas de aves” foi considerado como uma tomada de consciência coletiva,
inexplicável por ter sido tão geral e tão repentina, mas, porque todos se
sentiram bem com isso, poucos se deram ao trabalho de tentar explicar, ou
entender, o que aconteceu e a ninguém, como sempre, ocorreu a hipótese de que a
causa era uma menina que há pouco tempo aprendeu a andar.
E teve o dia em que ela
aprendeu a ler porque o pai trouxe um jornal pra casa com a manchete de mais
uma ameaça de guerra no Oriente Médio, ela viu o pai com o jornal aberto sobre
a mesa da cozinha e perguntou o que estava fazendo, ele explicou que estava
lendo e ela quis saber o que é ler, então ele, porque apesar da ameaça de
guerra, ou pela banalidade da ameaça de guerra, ou pela distância de onde vinha
a ameaça de guerra, estava de bom humor, explicou que ler era decifrar aqueles
símbolos, que eram letras e que formavam palavras, ela quis ver e ele mostrou,
explicou de novo e ela entendeu e quando entendeu pôde ler e viu a ameaça de
guerra no Oriente Médio, mas ficou quieta e não falou nada porque se ela teve
alguma coisa que os filósofos poderiam chamar de “a priori” esta era a
consciência de que nem tudo pode ser dito.
Saiu de perto do pai para
que ele lesse e voltou a pegar o jornal mais tarde, sem abri-lo em todas as
páginas, mas brincando que brincava que sabia ler imitando o pai abriu na
página que explicava resumidamente a história do mar vermelho de sangue que desde
sempre banhou aquela parte do mundo. O jornal do dia seguinte vendeu bem mais e
as notícias que continham foram comentadas durante muitos dias em todos os
lugares onde pessoas se encontravam. Por algum motivo jamais desvendado, jamais
compreendido e logicamente jamais atribuído a uma menina que ainda não tinha
assoprado três velinhas os homens envolvidos nas guerras de tanto tempo e de
tantos mortos resolveram que era hora de viver em paz.
Foram muitas armas depostas,
muitas bombas não explodiram, muita munição fabricada não saiu dos estoques das
fábricas que fomentam guerras pela ideologia do maior lucro. Mais desempregados
e menos mortos, mais diálogos e menos mutilações, mais trabalho, muito mais trabalho
na reconstrução de algo que dessa vez aparentemente não seria destruído. Esse
foi o principal assunto em cada bar e em cada esquina, em cada jornal e em cada
revista por muitos dias, até quando o foco das atenções se virou para as
tentativas de explicação das mudanças, agora tantas e tão drásticas, que vinham
acontecendo pelo mundo quase todos os dias. Crescia a lista de doenças que
desapareciam do mesmo jeito que a gripe desapareceu; e junto com as doenças
deixavam de existir os defeitos congênitos e as debilidades patogênicas; não
havia mais anemia, osteoporose, diabetes, asma, síndrome de down, mal de
Alzheimer, catarata; desapareciam todas as doenças que apareciam citadas em
alguma manchete de jornal ou revista que ficasse exposta em alguma banca de
jornal que estivesse no caminho num determinado dia em que ela saia de casa
para passear com a mãe ou o pai; desaparecia qualquer doença que um conhecido
da mãe ou do pai tivesse e cujo caso fosse citado na sala ou na mesa de jantar
numa hora em que todos juravam que ela estava distraída demais com os brinquedos
para ouvir a conversa. E, de repente, a gravidez passou a ser voluntária e
ninguém mais foi surpreendido com um filho não planejado graças a uma conhecida
de sua mãe que engravidou sem querer e estava tensa por conta das mudanças que
esse inesperado filho causaria em sua vida.
Os cultos evangélicos
perderam muito de seu apelo porque não era mais possível encontrar alguém com
uma doença grave ou uma deficiência qualquer que justificasse fazer essa pessoa
passar por uma sessão de “milagre de Jesus” como aquelas que acontecem com
tanta frequência e que trazem tantos benefícios para a coleção de carros
importados dos pastores mais bem sucedidos. Doenças e defeitos de nascimento
foram migrando dos relatórios de plantão médico para os livros de história com
uma rapidez tão grande que as pessoas tinham dificuldade para acompanhar essa
transmigração e teria havido um caos muito grande se não fosse pela estranha
disposição à boa vontade que tomou conta das pessoas e pelas mudanças do clima
que fizeram aumentar a níveis jamais vistos a produtividade da terra.
Ninguém entendia mas
todos estavam eufóricos, os mais passivos aproveitavam os bons ventos para
viverem horas e dias de deslumbramento lotando as igrejas e templos onde iam
agradecer a Deus sem lembrar de perguntar por que Ele não fez isso antes, ou
lotavam bares, parques, praias e praças para brindarem e brincarem de
finalmente viver bem; os mais inquietos e questionadores pensavam e produziam;
saiam livros, músicas, filmes e nos laboratórios não descansavam as pipetas e
os tubos de ensaio. O mundo parava para apreciar as mudanças tão bem vindas e o
mundo se agitava para entender quais eram e por que eram essas mudanças; os
primeiros, como sempre, eram mais bem sucedidos.
Ninguém associou as
mudanças milagrosas às notícias de jornal porque ninguém sabia que ela sabia
ler, aliás, como fato e como realidade ninguém sabia sequer de sua existência,
e mesmo os pais não podiam associar nenhum acontecimento à sua filha que não
conheciam e não reconheciam como deusa porque ela não via jornais todos os dias
e nunca dava mostras de ter lido a manchete ao passar pela mão da mãe na frente
de uma banca de jornal e ninguém sabia das vezes em que ela poderia ter ouvido o
repórter da televisão dizer a notícia enquanto passava pela sala,
semiadormecida, nos braços do pai ou da mãe.
Algumas coisas causavam
danos por serem consertadas na ordem inversa do que talvez fosse mais lógico, a
culpa era das notícias de jornal; por exemplo, um cachorro criado para atacar
qualquer estranho que visse, viu como estranha uma criança cuja morte foi
manchete de primeira página em um tabloide sensacionalista que ela viu exposto
na banca de jornal; por conta disso os cachorros não mais morderam pessoas e se
tornaram guardas quase inúteis colaborando para o aumento dos casos de roubos a
residências, e esse aumento foi notícia alguns dias depois de os cachorros
pararem de morder gente, só então as pessoas pararam de roubar. O roubo foi
extinto como uma doença e ninguém mais foi assaltado, teve sua casa invadida ou
sua carteira furtada; ninguém sentiu falta do roubo, nem mesmo os ladrões.
As mudanças climáticas, a
calma da terra e a paz dos vulcões tiveram mais impacto do que o
desaparecimento das doenças. Não mais terremotos depois de um terremoto que causou
muitas mortes no México, não mais erupções vulcânicas depois de uma erupção que
causou a remoção da população e a mudança da paisagem de uma ilha do pacífico,
não mais enchentes depois de uma chuva que deixou desabrigados na índia, não
mais furacões depois de um tornado que abriu um caminho entre casas e árvores
em uma paisagem de cartão postal nos Estados Unidos, não mais nevascas depois
de uma queda de temperatura que causou transtornos na suíça e não mais períodos
de seca depois de um inverno que aumentou o nível de pobreza no nordeste do
Brasil.
E as catástrofes
terríveis anunciadas desde séculos antes do nascimento dela foram acontecendo
de uma forma tal que não puderam ser consideradas catástrofes; subia o nível do
mar e as pessoas que moravam nos lugares mais baixos, não importa o valor de
suas mansões ou a simplicidade de seus barracões de caiçara, tiveram que se
mudar para terras mais altas, em compensação as chuvas começaram a cair mais
onde eram mais raras e as terras mais desertas começaram a produzir. A
temperatura baixou no equador e subiu nos polos e muitas terras férteis foram
reveladas pelo derretimento de camadas de gelo que não conheciam o estado
líquido há milênios, a face do planeta mudou, e mudou rapidamente, e mudou para
melhor a ponto de poder abrigar e alimentar mais gente; só que, graças ao fato
de a gravidez ser voluntária, nem sequer tinha mais gente.
Tudo era surpresa e
espanto e todos queriam saber qual era o deus responsável por tão drásticas
mudanças, cada religião atribuía o milagre a seu deus sem querer saber e sem
poder imaginar que a responsável por tudo era uma menina que lia jornais em
segredo e que estava ansiando pelo seu primeiro dia na escola. Nunca se falou
em “fase de transição” com tanta verdade quanto se fez naquele período; o
planeta mudava, o cotidiano mudava, a economia e a política mudavam, mudava a
alma dos homens.
E quando finalmente ela
pôde estrear sua mochila cor de rosa, embarcar pela primeira vez na perua escolar
e conhecer sua primeira professora o mundo já era um lugar onde uma deusa podia
viver. Precisava apenas de alguns pequenos ajustes, que ela faria certamente à
medida que, crescendo, aprendendo e apreendendo, ela pudesse perceber que eram
necessários; para isso teria todos os 248 anos de sua vida, ao fim dos quais
resolveria morrer, deixando então um mundo sem guerras, sem velhice, sem
doenças e sem injustiça que, a partir daquele tempo, se tornaria também um
mundo sem deuses que jamais soube ter abrigado uma deusa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário