23 de novembro de 2022

REFUTAÇÃO DAS CINCO VIAS DE TOMÁS DE AQUINO



O que se diz comumente é que o tomismo usa argumentos de cunho empírico porque emprega a razão a serviço da fé cristã. Dizem que com fatos que se demonstram por via da experiência Tomás de Aquino teria provado a existência de Deus. Uma parte dessas chamadas provas empíricas são as Cinco Vias que Levam a Deus.

Mas, analisando de forma menos apaixonada, o que se nota é que esses argumentos não são realmente empíricos porque na verdade não se demonstram por via da experiência. O que eles fazem é refletir explicações arduamente procuradas e trabalhadas para dar lógica – uma lógica discutível por sinal – a uma opinião formada: a afirmação de uma “verdade”, para a época e para o autor, inquestionável.

Em Tomás de Aquino e nos demais pensadores religiosos, desde Agostinho até C. S. Lewis, e antes de um e depois do outro, os argumentos e toda a construção argumentativa, via de regra, não partem da dúvida, o ponto fundamental de todo estudo que se possa chamar de imparcial. Todos eles partem de uma certeza e usam todos os subterfúgios de uma aparente racionalidade para confirmar essa certeza.

Não há uma verdadeira pesquisa racional sobre se deus existe ou não, essa questão jamais é levantada seriamente; há uma construção de argumentos deliberada e cuidadosamente preparados com o objetivo de convencer qualquer pessoa que ouse duvidar. Apenas e tão-somente isso.

E essa construção de argumentos, para mim, é uma inversão de caminho. A filosofia, que nas demais investigações parte das perguntas para, na tentativa de respondê-las, construir um arcabouço teórico, nesse caso, inverte a ordem e parte de uma resposta “inquestionável” – o que em geral as respostas filosóficas não são – para construir toda uma gama de explicações que corroborem essa resposta prévia. Despreza-se qualquer argumento, por mais razoável que seja, se esse argumento trouxer algum perigo para a confirmação dessa “verdade” preestabelecida. Isso, a meu ver, não é filosofia.
Mas vamos às cinco vias:

1 - A primeira é a Via do Movimento: o argumento parte da constatação de que as coisas se movem. Todas as coisas se movem, desde as galáxias até as moléculas – não que Tomás de Aquino tivesse lá muito conhecimento sobre galáxias e moléculas, claro, mas Eppur si muove – tudo na natureza, homens animais, plantas rochas, planetas, tudo está em constante movimento e em constante transformação. Para Tomás de Aquino, se existe movimento existe também a causa desse movimento, existe aquilo que provoca o movimento, existe um “Primeiro motor”.

Ele explica que um jogador que impulsiona uma bola, que um raio que cai na terra e incendeia uma árvore ou uma floresta; ou a força da gravidade que nos mantém sobre a superfície e que mantém corpos celestes em órbita; são os motores desses movimentos relacionados. Novamente: não consta que Tomás de Aquino tivesse conhecimentos precisos sobre a lei da gravidade, ainda faltava muito tempo para que Isaac Newton fosse atingido por uma maçã.

E Tomás de Aquino constata que o agente do movimento é externo ao objeto movido, ou seja, nada pode mover-se a si próprio, nada pode ser motor e movido ao mesmo tempo; nenhum carro se locomove sem algum tipo de combustível.

Porém, esse raciocínio conduz a um absurdo lógico e parece que Tomaz de Aquino não o percebe tão bem assim. O que ele conclui é simplesmente que se todo movido possui um motor, teria que obrigatoriamente haver uma sucessão quase infinita de motores e movidos; daí, pela necessidade de chegar a algum lugar e retrocedendo até um determinado ponto que ele julga necessário, Tomás de Aquino conclui que teria que haver um primeiro motor e que não havendo um primeiro motor, também não haveria um primeiro movido e um segundo motor e assim por diante.

Resumindo: de acordo com esse raciocínio, sem um primeiro motor o movimento seria impossível. Daí que, para ele, a única forma de explicar o movimento é conceber um primeiro motor e esse primeiro motor seria obrigatoriamente deus. Portanto, deus seria a causa primeira de todas as coisas, seria esse primeiro motor que não é movido por nenhum outro.

Mas a própria lógica de Tomás de Aquino se embaraça e tropeça nessa teia de argumentação; se nada se move sem uma causa externa e se pode ter uma causa primeira, então temos um problema que pode ser insolúvel porque poderíamos perguntar qual é a causa primeira de deus uma vez que, logicamente e racionalmente, nada nos obrigaria a “parar” em deus o raciocínio que Tomás de Aquino construiu. Daí que podemos perguntar, com todo o direito lógico de fazê-lo: Se nada se move sem uma causa externa não há razão para que deus seja exceção à regra, portanto, quem move deus? E eu estou muito longe de ser a primeira pessoa a fazer essa pergunta.

Outra hipótese possível, e que não foi considerada por Tomás de Aquino porque a existência de deus não era algo questionável para ele, é essa simples e lógica dúvida: Se pode ter uma causa primeira, essa causa primeira precisa mesmo ser deus? E precisa ser ESSE deus? Aparentemente não, ela pode ser, por exemplo, a lei da gravidade, ou a força de atração; ou uma força outra qualquer que nem sequer conhecemos. Afinal, se tudo que podemos afirmar com toda convicção sobre o universo é que não conhecemos tudo sobre o universo, por que não pode existir uma força externa e não consciente desconhecida de nós e que foi o primeiro motor?

2 - A segunda via é chamada de Causalidade e é parecida com a primeira. Observa-se na natureza uma ordem segundo uma relação de causa e efeito. O jogador que chuta é a causa, a bola que entra no gol é o efeito. Da mesma forma que é impossível algo mover a si próprio, é impossível algo ser causa e efeito ao mesmo tempo: a bola não entra no gol sozinha.

Então, se todo efeito tem uma causa, novamente haveria uma sequência infinita de causa e efeito até chegar a um determinado ponto, estipulado por Tomás de Aquino como sendo deus, mas que, da mesma forma e com os mesmos argumentos da teoria do Primeiro motor, pode ser discutido e refutado. Ele diz novamente que a relação causa-efeito não seria possível a menos que admitamos uma causa primeira no universo, e que essa primeira causa é deus.
E vemos que o problema e a resposta são similares à teoria do Primeiro motor:

1 – Se todo efeito tem que obrigatoriamente ter uma causa, deus é um PUTA efeito: Qual seria a causa?
2 – Se pode ter uma causa primeira para todos os efeitos, nada obriga, logicamente, a que essa causa primeira seja a que Tomás de Aquino estipulou que seria.

Tomás de Aquino parou a corrente onde quis e onde era conveniente para ele nos dois casos; parou onde serviria para tornar seus argumentos suficientes para o que ele queria. Na verdade, e de novo, essa primeira causa, mesmo que precise existir não precisa ser obrigatoriamente deus e não precisa ser obrigatoriamente ESSE deus; pode ser qualquer outra coisa mais simples como, por exemplo, aquela mesma força desconhecida e não consciente de que falei acima.

3 - Na terceira via, chamada de Possível e Necessário, Tomás de Aquino diz que todas as coisas podem ser e podem não ser. Todas as pessoas que conhecemos, todas as coisas que vemos, e nós que as vemos, não existimos desde sempre e para sempre. As coisas todas, animadas ou inanimadas, nascem, se transformam e morrem ou se acabam. Em outras palavras: seres vivos ou coisas têm existências finitas e efêmeras.

E isso nos leva a pensar que houve um momento ou um tempo-sem-tempo infinito em que nada existia, um instante ou uma eternidade de puro nada, que os astrônomos, atualmente, localizariam antes do "Big Bang", se é que se pode falar em “antes” quando o tempo ainda não existia. De qualquer forma, de acordo com a ciência moderna, esse puro nada nem seria um “puro nada” assim tão absoluto. Mas, para Tomás de Aquino, houve um puro nada, e nesse tempo de puro nada algo aconteceu e deu origem a tudo que há no universo.

Para que o universo saísse da mera possibilidade – a “potência” de que fala Aristóteles – para a existência, ou o “ato” aristotélico, é preciso imaginar que algo tenha provocado isso, caso contrário o nada continuaria sempre e para sempre sendo nada. 

Consequentemente, na visão de Tomás de Aquino, entre todos os seres possíveis, animados ou inanimados, todos os seres em potência, ou, entre todos os seres que podem ser e podem não ser, é razoável acreditar que haja um ser que seja necessário, e que esse necessário seja puro ato.
Adivinhe que ser é esse!

É necessário acreditar que nessa cadeia de potência-ato tem que existir algo que nunca tenha sido em potência, isto é, um ser não contingente, um ser que nunca foi possibilidade, que foi sempre realidade. Daí, a menos que deus exista como sendo esse ato puro, como esse ser necessário por si mesmo, segundo Tomás de Aquino, retornaremos ao absurdo das cadeias causais infinitas dos dois argumentos anteriores.

Mas Tomás de Aquino não atenta para o detalhe lógico de que se existia deus antes de tudo, então não existia o nada; nada para Tomás de Aquino é ausência de toda e qualquer coisa e deus é alguma coisa, portanto, se existe “apenas” não existe o nada.

Repetindo: Uma vez que o nada é a ausência de toda e qualquer coisa e uma vez que deus é alguma coisa, mesmo com a ausência de tudo o mais que foi criado por deus, com a presença de deus existe apenas deus, que é alguma coisa, e essa presença única é mais do que suficiente para anular a “presença” do nada porque o nada mesmo seria o “antes de deus”.

Daí que se existiu um nada existiu um momento ou um infinito de tempo-sem-tempo em que deus não existia. E volta a questão: se nada cria a si mesmo e se nada move a si mesmo, o que criou deus? Se existiu um nada existiu um antes de deus que foi o nada, e não um nada antes de tudo que veio depois de deus porque esse não seria nada. Se existia um nada, o nada deixou de existir quando deus passou a existir e não quando deus criou o universo, daí temos que voltar à pergunta: quem criou deus?

4 - O quarto argumento, chamado de Graus de Perfeição, é mais fácil de entender. Diz Tomás de Aquino: "Encontram-se nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre, etc." Por exemplo, Marisa é mais simpática que Luísa, o leão é mais feroz que o cachorro, o produto fabricado pela empresa X é mais confiável que o produto fabricado pela empresa Y. "Ora, ‘mais’ ou ‘menos’ se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam diferentemente daquilo que é em si o máximo".

Ou seja, a gente diz que uma coisa é mais ou é menos algo aproximando ou afastando mais essa coisa da ideia de perfeição; é necessário, portanto, que se tenha algo como parâmetro comparativo, esse algo seria a perfeição absoluta, como um belo absoluto que me permite afirmar que Marina é muito bela e Luzia é apenas bonita. Tomás de Aquino conclui a partir desse argumento que: "Existe algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos deus".

Mas esse argumento nos leva de volta às refutações, que fiz, das provas da existência de deus de Descartes: minha ideia de perfeição, sobre qualquer aspecto, não é igual à ideia de perfeição de outra pessoa e nenhuma das duas ideias de perfeição é confiável. Além disso, afirmar que alguma coisa existe não faz com que ela exista, posso afirmar que existe uma cobra azul abraçando o universo; o que essa afirmação acrescentaria aos conhecimentos que temos do universo? Absolutamente nada, uma vez que a minha afirmação da existência de uma cobra azul abraçando o universo não tem o poder de fazer com que efetivamente exista uma cobra azul abraçando o universo.

A mesma coisa vale para a perfeição: afirmar que deve existir um perfeito Bem, uma perfeita Beleza, etc., não obriga a que essas perfeições existam nem obriga a que sejam absolutas e não relativas, particulares e variáveis de pessoa para pessoa, como elas parecem efetivamente ser.

Sei o que é “quente”, mas é fato que o contato com um determinado grau de “quente” eliminaria minha existência, portanto, é lógico que eu sei o que é quente sem nunca ter o conhecimento empírico do grau máximo de quente. Se não tenho e não posso ter esse contato empírico, estou autorizada a pensar que esse grau máximo não precisa existir. A partir daí, posso concluir que não precisa existir nenhum “grau máximo” do tipo que Tomás de Aquino aponta; e o mesmo posso dizer da perfeição, que dizem ser deus.

Tantas pessoas vemos dizendo que têm ou tiveram o pai perfeito, a mãe perfeita, o amor perfeito, a filha perfeita ou o filho perfeito, e basta olhar para essas perfeições para concluir que a noção de perfeição das pessoas varia muito. Fora isso, e para fechar minha contraprova da quarta via, posso dizer que tenho uma ideia de deus perfeito e que absolutamente nenhum deus sobre o qual eu tenha tido algum conhecimento sequer chega perto da minha ideia de perfeição, menos ainda o deus cuja existência Tomás de Aquino tenta provar.

5 - A quinta e última via, chamada Finalidade, trata dos seres que se movem em uma direção, dos seres que possuem uma finalidade; o que, de acordo com Tomás de Aquino, é facilmente verificável na vida existente no planeta Terra, que, ainda de acordo com ele, progride rumo a maiores níveis de organização, desde simples bactérias até modernas sociedades humanas.

Tomás de Aquino usa como exemplo o arqueiro: a flecha só parte em direção ao alvo porque existe o arqueiro que mira e dispara, isto é, porque há uma inteligência guiando a flecha. O "arqueiro" do universo, por assim dizer, é deus.

Acontece que não há nenhuma prova de que todas as coisas e todos os seres realmente possuam uma finalidade ou mesmo de que progridam. Na verdade, observando com mais cuidado a própria vida e existência das pessoas, o que parece é justamente o contrário; a vida da grande maioria das pessoas, olhada de uma certa distância, em nada, absolutamente nada, parece ter mudado ou se transformado e, olhada de uma distância maior, a própria vida na terra e até a própria terra não parecem ter nenhuma importância, caminho ou objetivo.

Essa afirmação de Tomás de Aquino está aparentemente baseada apenas em uma opinião e, como toda opinião, pode perfeitamente não ser aceita. Em especial a afirmação de que as coisas progridem, que é inclusive refutável pela ciência. A Teoria da Evolução fala em mudança, em adaptação, não em progresso; e mesmo a sociologia e a antropologia podem contestar com argumentos bastante fortes esse conceito de que haja uma evolução, no sentido de progresso, do ser humano. Daí se conclui que não há como uma opinião discutível como essa ser prova de nada.

Se o que parece haver na verdade é uma sequência de acasos, azares e coincidências, não fica tão óbvio assim detectar uma “mão de arqueiro” dirigindo essa flecha que seria a existência. Com tantas causalidades e relações aleatórias fica na verdade muito difícil perceber uma inteligência conscientemente boa ou má; menos ainda perfeita, nos vários sentidos que o ser humano pode dar ao conceito de perfeição.

Parece mais lógico que não exista nada, ou então que exista ou tenha existido alguma coisa tão diferente desse deus cuja existência Tomás de Aquino defende e que tantas pessoas vão às igrejas, às sinagogas e aos templos cultuar que essa outra coisa pode não ter nenhum juízo de valor ou então ter ou ter tido juízos de valor totalmente diferentes e alheios à nossa existência. Essa coisa, seja ou tenha sido o que for, a meu ver, teria que ser diferentemente nomeada.

Esse algo tão diferente pode ser uma força inconsciente e desconhecida comparável à gravidade, pode ser algo coletivo comparável a uma nuvem de elétrons, ou pode ser partes de nada, sem materialidade e constituído de pura energia, um tipo de força comparável à eletricidade. Na minha opinião nenhum desses tais seres, conscientes ou não – entre outros que consigo imaginar e entre outros ainda que penso que seriam possíveis mesmo que eu não consiga imaginá-los – pode ser chamado “deus”.

Isso porque o ser a que as pessoas chamam deus é tão humanamente identificável, tão apto a ser criação da mente de pessoas que querem resposta e consolo para suas questões e seus medos que, mesmo com toda a variedade que gera conflitos e guerras, se pode apontar uma unidade nos conceitos de “deus”. Daí que qualquer possibilidade de força, consciência, energia ou o que seja, caso exista ou tenha existido, não seria identificável como deus.

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