Era adolescente, por vezes gritava com um agudo sorriso: Cadelo meu chinelo? Cadela minha blusa vermelha? Cadela minha caneta nova?... O tempo passou, os cabelos são de neve e a pele de pergaminho. Às vezes grita sem som e sem saudades: Cadela minha vida?
27 de outubro de 2024
AMOR DE PAI
Ontem, o pai do meu filho, falando sobre amor materno, por conta de um programa de televisão que vimos, disse que as mães amam mais porque têm uma ligação biológica mais forte com a criança, por conta da gravidez e do parto. Acontece que, no momento em que ouvi isso, pensei no pai que ele sempre foi para nosso filho e não me senti no direito de afirmar que o amor que eu sinto é maior do que o dele. Não depois de tantas provas de amor paterno, mais em forma de ação do que de palavras, que tenho presenciado nessas quatro décadas de convivência.
Sim! Tenho mais de 40 anos de experiência como mãe e durante esse tempo tive a companhia dele, o pai do meu filho. E também, além da minha própria mãe e do meu próprio pai, ao longo da vida, conheci muitas mulheres que são e foram mães e muitos homens que são e foram pais.
Fazendo um “balanço” de tudo que senti, presenciei e li com respeito à existência e ao comportamento das pessoas que tiveram responsabilidade sobre alguma criança, própria ou adotada. O que vi foi muitas mães maravilhosas, muitas mães não tão maravilhosas assim e, infelizmente, algumas mulheres que nunca deveriam ter sido mães. E, por incrível que pareça, o mesmo vale para os pais.
Pensando na agressividade de muitos pais, incluindo o meu, concluí que muito dessa agressividade se deve mais à maneira que esses homens foram criados do que à menor intensidade de amor que sentem por seus filhos e filhas. Lembro do meu pai me espancando e essa lembrança sempre me abala e dói em mim até hoje, mas também lembro dele me apoiando, conversando comigo, me presenteando com uma alegria tão grande no rosto que não pode ter sido fingimento, e lembro dele trazendo parte da refeição que recebia no trabalho para a gente. Em uma época de grande crise, ele deixava de comer a “mistura” para que nós, as crianças, comessem melhor.
Se a lembrança dos muitos bons momentos, dos cuidados e dos sacrifícios da minha mãe me comovem e me enchem de amor por ela, como posso ter o direito de desprezar a lembrança dos muitos bons momentos, dos cuidados e dos sacrifícios do meu pai e, levando em conta apenas os espancamentos, concluir que ele não me amava? Como posso fazer isso sabendo que meu pai foi criado, não sei sob quais “instrumentos de convencimento”, para se tornar um “macho alfa” e para acreditar que “criança precisa apanhar” por pai e mãe que também “aprenderam” assim?
Uma sociedade patriarcal e misógina produz homens agressivos e misóginos; e produz mulheres que replicam esse patriarcado e essa misoginia. Foi por isso que meu pai me espancou; foi por isso que minha mãe me obrigou a lavar a louça com o chinelo na mão, mas nunca sequer pensou em fazer a mesma coisa com meus dois irmãos. Como posso acusar minha mãe ou meu pai de não me amarem se foi tudo que fizeram desde que nasci e até antes disso?
O amor de pai é mesmo um amor menor do que o amor de mãe ou, mais antigamente do que hoje, os meninos são educados para esconderem o quanto amam e as meninas são educadas para demonstrar amor mesmo quando não o sentem?
Existem, por mais que muita gente ainda tente negar, mulheres assumindo que não têm nenhuma “vocação” para a maternidade, será que mulheres assim não existiam no tempo em que o casamento e a maternidade eram as únicas opções para as mulheres, além da prostituição? Hoje, as mulheres que rejeitam a maternidade vivem suas vidas sem se sentirem incompletas, como minha mãe dizia que eram todas as mulheres que não conseguiam se tornar mães, porque para ela não havia a mínima possibilidade de uma mulher não ter o tal “instinto materno”, apesar das muitas histórias de mães horríveis que ela já tinha encontrado.
Resumindo: Acho que, no caso dos seres humanos, o louvor do amor de mãe em detrimento do amor de pai é mais uma construção humana do que uma realidade.
17 de outubro de 2024
VEUS E AFINS
Sempre que vejo textos tolerantes que falam dos fundamentos, das tradições, de costumes e vestimentas das religiões; explicando, por exemplo, que determinadas práticas, roupas e cabelos têm como objetivo fazer com que as pessoas “não sejam escravas do desejo sexual” ou que determinada prática “tem a higiene e a saúde como objetivo” na sua raiz tradicional; fico pensando "com meus botões" e me perguntando o quanto há de "CONSCIENTE" e de “VOLUNTÁRIO” na adesão de pessoas adultas aos costumes e tradições das religiões dos países, comunidades e famílias em que foram criadas. Principalmente no caso das mulheres que, praticamente no planeta inteiro, estão desde sempre inseridas no machismo estrutural.
Não tenho respostas, só perguntas e um desconforto que não me larga.
Até onde é voluntário o uso de roupas e cortes de cabelo "tradicionais" (tanto para homens quanto para mulheres) de determinada religião?
Sei que a moda ocidental, comercial, elitista, consumista, mesmo que desvinculada de tradição religiosa, também pode ser vista como um tipo de imposição.
Sei que se pode perguntar até onde uma garota que copia as roupas que seu grupo usa é mais livre do que uma muçulmana que "precisa" usar um véu.
Será que eu vejo a primeira BEM menos aprisionada do que a segunda porque também sou uma mulher sem liberdade? Acho que não, mas achar basta?
Tudo que sei é que todas as "fantasias" religiosas, da burca à costeleta comprida dos homens no judaísmo ortodoxo, passando pelo hábito das freiras e pela careca dos monges budistas, me causam estranheza e desconforto.
Nada do que se faz “tradicionalmente” para “agradar”, “louvar” ou “obedecer” a um deus ou a uma religião me parece livre.
Sei que, na prática, a mídia também se tornou uma espécie de deus, ou uma “fabricante” de deuses, porque os cria e os esquece o tempo todo. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, acho que as “tradições” das religiões institucionais são mais graves e fazem uma prisão com “grades” mais sólidas e correntes mais “pesadas”.
Porque dos deuses criados e propagados pela mídia as pessoas – até certo ponto – ainda podem fugir, mesmo que resolvam substituir por outro e depois outro ao longo da vida. A vantagem é que uma debandada, troca ou fuga pode acontecer (e acontece!) sem que o “deus” rejeitado prejudique as pessoas que o rejeitaram até mesmo após a morte.
Enfim, sinto desconforto quando consigo perceber a manipulação das pessoas, me arrepia todo tipo de manipulação criada pela sociedade civil, pelas ideologias políticas, econômicas e sociais excludentes e alienantes, pelo capEtalismo escravagista de corpos e mentes. Sinto desconforto e sinto MUITA raiva!
Porém, isso tudo não diminui nem um pouco o desconforto que me causam as exigências limitantes impostas pelas religiões. Principalmente porque, frequentemente e em larga escala, as religiões se tornam aliadas essenciais das manipulações todas, com a participação ativa de suas lideranças na exploração, na ambição e na ganância que marcam todos os sistemas opressores.
10 de outubro de 2024
AGRADECER?
Teve uma fase da minha vida em que eu só entrava na igreja ou pensava em deus para agradecer.
Mas aí, em algum momento que não sei precisar, comecei a sentir vergonha de agradecer.
Comecei a perceber que estava agradecendo por algo que eu tinha, mas que muitas e muitas pessoas, tão ou mais merecedoras do que eu, não tinham.
Percebi que isso é sempre verdade no caso de crianças.
Esse “olhar para os lados” e essa vergonha me levaram a concluir que tanto pedir como agradecer, no sentido religioso, é egoísmo puro.
Olhar ao meu redor, me levou a perceber que eu estava agradecendo pela injustiça.
Um deus que desse a mim as boas coisas que tenho, invariavelmente estaria negando essas mesmas coisas a muita gente.
A milhões de crianças!
Esse deus, se existisse, não mereceria agradecimento, não mereceria respeito, não mereceria amor.
CONDENADA À LIBERDADE?
Não é sobre Sartre. Não é sequer sobre o que Sartre escreveu ou disse, porque pouco li e nada ouvi do próprio Sartre. É sobre a ideia de que "O homem está condenado à liberdade".
Eu sempre me senti incomodada com essa frase, desde a primeira vez e sempre que a ouvia ou lia em algum lugar. Não porque quero "desmontar" Sartre. Não é isso!
É que sempre pensei no singular, em mim, na pessoa "condenada à liberdade" e alguma coisa não "encaixava". Mas eu nunca conseguia explicar o porquê desse incômodo. Pelo menos não de forma "filosófica".
Mas agora, finalmente, resolvi recusar a angústia e dizer não. Dizer que não sou condenada à liberdade e não sou responsável por toda a humanidade.
Eu recuso a angústia porque não sou livre para decidir minha própria vida e não sou livre para tomar decisões pela humildade como um todo.
Cheguei a pensar que estar condenada à liberdade pode ser uma ideia válida quando se pensa que quem está condenada não sou eu e sim a humanidade, que nesse caso, tomaria decisões sobre si mesma. Mas nem isso é verdade!
São tão poucas as pessoas que têm poder para tomar decisões que afetam muita gente e, mesmo assim, são tantas as variáveis, os imprevistos, os desconhecimentos, as intencionalidades e os acasos que, a meu ver, não dá para jogar tão pesada carga de responsabilidade sobre ninguém. Seja no singular ou no plural.
Se os pensamentos e argumentos de Sartre estavam certos, sem ler e entender Sartre fica difícil afirmar, mas que sou livre e angustiada eu posso negar sim.
Assinar:
Postagens (Atom)