15 de abril de 2019

PESSIMISMO E REALIDADE

“O mundo é um lugar horrível”, declarou Trump em seu livro Think Big. “Os leões matam por comida, mas as pessoas matam por esporte.” E: “A mesma ganância ardente que faz as pessoas saquearem, matarem e roubarem em situações de emergência, como incêndios e enchentes, opera diariamente nas pessoas comuns. Ela se esconde debaixo da superfície e, quando você menos espera, levanta sua cabeça tenebrosa e morde você. Aceite. O mundo é um lugar brutal. As pessoas vão aniquilar você por pura diversão ou para se exibir para os amigos.”

Nunca vou elogiar Donald Trump porque ele é e representa o oposto do que defendo como ética, decência e tudo que vejo como positivo no que se poderia nomear como humanidade. No entanto, lendo o livro A Morte da Verdade, de Michiko Kakutani, na página 191, trombei com o trecho acima e sou obrigada a dizer que me parece muito correto. O mundo é sim um lugar horrível e as pessoas matam por esporte, discriminam, subjugam e humilham outras pessoas usando os argumentos mais esdrúxulos, contraditórios, falsos e absurdos para “justificar” todo o mal que praticam. O problema com Trump é que escolheu se tornar aquele ser em lugar de combatê-lo, e o problema com todos os seus apoiadores, admiradores, aliados e defensores é que fizeram a mesma escolha. A maioria das pessoas que admiram, defendem e invejam os predadores mais poderosos se comportam, nos níveis a que têm acesso, como esse ser humano que Trump descreveu tão bem. E quando um deles consegue algum poder real, como o governo de um país, o mundo se torna um lugar ainda mais horrível. Essa é a história da humanidade.

Falar em “as pessoas” para destacar as falhas do animal humano pode parecer que estou generalizando e dizendo que todas as pessoas se enquadram nessa classificação de predador abominável, mas sei muito bem que não é assim. Estou lendo também o livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari e, na página 26 ele diz que “A tolerância não é uma marca registrada dos Sapiens. Nos tempos modernos, uma pequena diferença em cor de pele, dialeto ou religião tem sido suficiente para levar um grupo de Sapiens a tentar exterminar outro grupo”. E pergunta: “Os Sapiens antigos teriam sido mais tolerantes para com uma espécie humana totalmente diferente?”. É verdade que nós, como animais, não somos tolerantes e adotamos o assassinato e o extermínio corriqueiramente em nossa história, possivelmente desde a época em que éramos caçadores coletores e, no mínimo, ajudamos a exterminar os outros Sapiens que dividiram o planeta conosco naquele período. Mas, isso não quer dizer que não podemos, como indivíduos e como grupos, usar a mesma inteligência da qual temos nos orgulhado tanto a ponto de, por causa dela, nos julgarmos superiores e mais “evoluídos” do que os outros animais para chegarmos à conclusão de que não somos superiores aos outros seres humanos, não somos os donos e senhores do planeta com direito à exploração irrestrita da vida que ele contém e podemos e devemos respeitar o outro, seja humano seja animal, e não causar dano nem nos omitirmos diante do sofrimento de outro ser vivo. Podemos sim usar nossa inteligência para repensarmos nossa animalidade ancestral, e muitos de nós, em vários níveis e de várias formas fazemos isso, e são essas pessoas que tornam possível, depois de tudo, ainda ter alguma esperança na humanidade.

Mas não é fácil, seguramente não é fácil ser otimista quando vemos o quanto a maioria das pessoas está sempre disposta a aderir, a defender e a lutar por qualquer ideia que a favoreça, seja como indivíduo seja como grupo. Principalmente como grupo, porque além do sentimento de superioridade individual há sempre a valiosíssima sensação de pertencimento, de acolhimento, de ser “parte de algo maior”, por mais que esse “maior” seja um mito, uma invenção, uma mentira, uma fraude. Para se sentirem privilegiados, superiores, melhores e mais dignos do que todos os demais, pessoas e grupos são capazes de acreditar em qualquer mentira confortável, não só se recusam a usar a razão naquele quesito como chegam a hostilizar - a ponto de usar a violência mais letal - qualquer um que tente quebrar ou expor essa mentira.

Quase todos os discursos que defendem algum tipo de superioridade de um determinado grupo sobre outro está usando a primeira pessoa, do plural ou do singular. “Eu” sou sempre um membro do grupo que defendo como aquele que tem direitos “inalienáveis”, “sagrados”, “lógicos”, “justificados”, “históricos” e “ele” é sempre um membro do grupo que deve se curvar diante da minha superioridade. Claro que, como sou inteligente, muitas vezes consigo camuflar meu discurso de forma que a dicotomia eu-ele não fique tão clara, e posso até, porque está claro que sou superior, conseguir que “ele” se convença de que meu discurso é impessoal e isento, posso até mesmo conseguir que um ou outro “ele” reproduza meu discurso, se convença e convença outros “eles” a se colocarem sob a minha “proteção”. Afinal, eu sou mais inteligente!

No livro Sapiens, citado acima, páginas 147-148, ficamos sabendo que as razões que levaram os europeus que colonizaram as Américas a escravizarem os africanos em lugar dos europeus do leste ou dos asiáticos não tiveram nada a ver com inferioridade biológica dos negros ou maldição bíblica. De acordo com o livro, três fatores os levaram a optar pelos africanos: a menor distância da América, o fato de já existir um comércio do tipo para o Oriente Médio e a maior resistência dos africanos às doenças tropicais, afinal, transportar pessoas que morreriam de malária antes de dar lucro não era interessante. Ou seja, basicamente, a escolha teve como razão o que costuma ser a razão maior na criação de todo e qualquer mito, mentira ou tabu: Dinheiro e poder.

Todas as demais “razões” são habilmente criadas e habilmente divulgadas depois e, como disse Paul Joseph Goebbels, uma mentira contada muitas vezes se transforma em uma verdade. A mentira que cria e sustenta o preconceito se entranha de tal forma que continua sendo “verdade” para muitas pessoas e grupos e, em muitos aspectos continua determinando a estrutura de uma sociedade, mesmo depois de anos, décadas ou até séculos de acúmulo de evidências e provas de que acreditou em mentiras. Ainda existem nazistas, ainda existem racistas, ao que parece ainda existem parsis e ainda existem pessoas e grupos que defendem a “verdade” irracional que justifica seus preconceitos com a violência mais brutal. Aparentemente não há racionalidade que possa superar o prazer estúpido e animalesco de se sentir superior e de ser parte de um grupo privilegiado. O animal que somos continua sendo o animal que mata e extermina em nome da sua alegada e nunca comprovada superioridade.

Isso é verdade para a mentira de que “Os arianos são superiores e os judeus são a escória que deve ser eliminada”, é verdade para “Os negros nasceram para serem escravos, é da natureza deles” e, pelo que diz a personagem Aban na página 175 de outro livro que estou lendo, A distância entre nós, de Thrity Umrigar: “Esses ghatis são sempre ghatis. Nós, parses, somos os únicos que tratam as empregadas como rainhas. E sempre recebemos o troco”, é verdade para os herdeiros das antigas castas superiores indianas. Nesse capítulo do livro, no qual outros personagens justificam e defendem estupidamente a ideia da supremacia parsi e da inferioridade dos não parsis, o que me pareceu emblemático foi que a mulher que se coloca contra todo o discurso preconceituoso está defendendo uma empregada que ela mesma não permite sequer que se sente em uma cadeira de sua casa. Para mim, essa personagem mostrou de forma muito eficiente a dificuldade que até mesmo as pessoas mais cultas, esclarecidas e sensíveis têm de se livrarem do preconceito internalizado em sua educação e sua cultura.

Sou branca, sou mulher, sou heterossexual, sou paulista, sou brasileira, sou professora, sou classe média, sou velha, tive lar, tive família, tive amor, tive acesso à educação, não tenho nenhum tipo de limitação ou deficiência física, sou casada, nunca fui espancada pelo meu marido, sou mãe de um filho heterossexual e intelectual e fisicamente “perfeito”. Isso tudo e cada uma dessas características me torna uma pessoa pertencente a um determinado grupo e, em alguns deles, tive “permissão” para internalizar algum tipo de preconceito. Em maior ou menor nível foi o que fiz e, com o tempo, tive que observar, questionar, pensar e aprender muito para me livrar deles. Nunca tenho certeza de ter conseguido, por isso continuo afiando minha empatia, me educando e me policiando. A verdade sobre mim, se é que há alguma, é que nunca estarei pronta e sempre serei aquela pessoa que não consegue entender aqueles que não lutam contra seus preconceitos e que, ao contrário, se agarram a eles como animais famintos.

Há pessoas que em lugar de tentar olhar para aquele que é alvo de preconceito, desvia os olhos, aceitando e propagando a “verdade” de que o preconceito não existe porque somos um povo pacífico e tolerante. Há pessoas que em lugar de tentar se colocar no lugar daquele que é alvo de preconceito fica procurando “justificativas” para poder dizer absurdos como “Isso não é natural”, “Homossexuais são todos promíscuos”, “Eu não sou homofóbico, mas...”. Há pessoas que adotam felizes e replicam entusiasticamente frases do tipo “Feministas são mulheres feias e mal-amadas”, “Mas isso é puro mimimi, somos todos iguais e todos podem vencer na vida com o próprio esforço”, “Ela queria o que andando com essa roupa?”, “Tá com pena? Leva pra sua casa!”, “Por que não tem o dia do orgulho hétero?”, “Bandido bom é bandido morto”, “A história comprova, índio é tudo vagabundo”. Há pessoas que replicam, divulgam e, pior, ensinam aos seus filhos todos esses “conceitos”, todas essas “pérolas de sabedoria” e outras “verdades” do tipo, sempre destituídas de empatia, conhecimento, interesse, raciocínio, verificação honesta dos fatos. E, o mais terrível, fazem isso com ênfase e orgulho, sem qualquer resquício de bondade.

Muitas dessas pessoas são aquelas mesmas que mandam mensagens de otimismo, mensagens religiosas, mensagens positivas impregnadas de palavras adocicadas como “amor”, “amizade”, “felicidade”, “carinho”. Muitas dessas pessoas frequentam assiduamente igrejas, templos, sinagogas, terreiros, encontros, retiros espirituais, marchas para Jesus, e outros eventos e lugares de confraternização, sempre em nome de um deus que, dizem, é todo bondade e amor. E elas, as pessoas fiéis, pias, tementes, se comportam nessas ocasiões, e em muitos casos também fora delas, como pessoas que visivelmente se julgam santas, iluminadas, ilibadas. Elas em geral demonstram sentir que são almas puras ou, no mínimo, que estão a caminho da purificação. Espalham a “palavra”, divulgam sua fé, usam camisetas e bijuterias com os símbolos que as distinguem como parte daquele grupo privilegiado que terá direito a um lugar privilegiado “À mão esquerda de deus pai todo poderoso”. Como elas conseguem é, para mim, um mistério maior do que a questão do surgimento do universo.

Essas pessoas são más? São boas? Se não podemos chegar a uma resposta definitiva sobre o que é o bem e o que é o mal, nada mais previsível do que não haver resposta definitiva para essas duas perguntas. Nesse caso, posso dizer o que penso e argumentar a respeito, e o farei: Essas pessoas são más! E, mais. Essas pessoas são hipócritas e egoístas. Principalmente egoístas. Mas, e essa é a parte mais difícil de concluir e assumir: Elas não são assim tão diferentes de cada um dos que, como eu, ficam indignados com esses comportamentos. Cada um de nós, em algum nível, nos comportamos como essas pessoas e o máximo que podemos dizer é que elas, ou algumas delas, são mais nocivas do que nós porque levam seu egoísmo a um grau mais elevado do que a média dos seres humanos o fazem. Isso se chama conviver com contradições, e é o que melhor fazemos, de acordo com Yuval Noah Harari, e eu concordo completamente com ele, apenas lamento muito mais... e isso talvez seja mais uma mostra do meu egoísmo atávico. Quem me autorizou a, com base apenas em um livro de história que tem que cumprir certos requisitos para ser considerado como tal, concluir que EU sou mais sensível às mazelas da minha raça?

Na página 172 de Sapiens lemos que: “Na Europa medieval, um nobre típico ia à igreja pela manhã e ouvia o sacerdote: ‘Riquezas, luxúria e honra são tentações perigosas. É preciso superá-las e seguir os passos de Cristo’. Voltando para casa, o nobre vestia suas melhores sedas e ia a um banquete no castelo de seu soberano. Lá, o vinho fluía como água, o menestrel entoava canções sobre Lancelot e Guinevere e os convidados compartilhavam piadas sujas e narrativas sangrentas de guerra. ‘É preferível morrer a levar uma vida de humilhação. Se alguém questiona sua honra, só o sangue poderá anular o insulto. E o que pode ser melhor do que ver nossos inimigos fugindo e ter suas belas filhas estremecendo a nossos pés?’”. Os senhores de engenho também iam à missa ouvir os mesmos sermões antes de passar no mercado de escravos, antes de mandar chicotear um negro fujão, antes de estuprar uma escrava mais “ajeitadinha”. E sua esposa, lembrando o sermão de domingo e sentindo o “espírito de deus em seu coração”, ajoelhava-se diante do oratório doméstico e rezava até sentir-se uma verdadeira santa, depois caminhava altivamente para a cozinha a fim de verificar como andava a preparação da refeição e, se algo não estivesse a seu gosto, distribuía alguns sopapos enquanto dizia que negros são mesmo animais ignorantes que só conseguem fazer alguma coisa “debaixo de pancada”. Esses, é claro, são apenas dois dos exemplos que se pode colher aos milhares ou milhões na história de nossa contraditória bondade.

Então afirmo: Pessoas que se dizem ou se creem boas são na verdade más, eu sou uma pessoa má e você que está me lendo é uma pessoa má também! Sou uma pessoa má porque faço três refeições ao dia e durante elas nunca penso no fato de que muitíssimas pessoas, incluindo crianças, passam fome. Eu sei disso, tenho consciência disso, lamento tremendamente que isso aconteça, mas não faço nada para que isso deixe de acontecer, exceto escrever muitas vezes a palavra “isso” e dizer ao meu banco que desconte uma quantia irrisória do meu salário para ajudar crianças carentes. No momento das minhas refeições não penso nelas porque – é o que digo a mim mesma – se o fizer vou me sentir mal, porque sei que meu salário de professora não seria suficiente sequer para alimentar as crianças que durante muito tempo vi jogadas pelas ruas de Copacabana, menos ainda para alimentar as pessoas que passam fome ao redor do mundo. E essa é uma verdade que eu poderia usar para me justificar cada vez que entro em minha casa, que compro uma roupa nova, que vou a um restaurante, que sou atendida por um médico do meu convênio, que viajo nas férias e em muitos outros momento em que estou usufruindo de algo que é total ou parcialmente interditado a uma grande quantidade de pessoas.

Posso usar essa verdade como justificativa para todos os meus privilégios porque ela é uma verdade, meu salário de professora realmente não é suficiente para que eu possa dar a todas as pessoas do mundo o mesmo tipo de vida minimamente digna que tenho. Mas se tanta gente não tem sequer o suficiente para levar uma vida minimamente digna, por que aceito morar, trabalhar, me divertir, viver, fazer parte de uma sociedade que permite e tolera que pessoas vivam com fome e morram sem dignidade? Consigo porque sou egoísta e má. Porque lamento mas não faço nada para mudar uma realidade que me incomoda, porque lamento mas consigo viver, consigo sorrir, consigo ser feliz e até mesmo me sentir grata à minha sorte quase da mesma forma que outras pessoas que fazem exatamente o que faço conseguem agradecer a um deus. Eu, do alto da minha racionalidade briguenta e teimosa, chego a perceber a contradição dessas pessoas que agradecem pelo que têm a um deus que acreditam ser todo poderoso e esquecem de culpar esse deus por não ter dado a todas as pessoas do mundo essas mesmas razões para agradecer. Critico as pessoas que egoisticamente aceitam que um deus todo poderoso deixe crianças morrerem de fome, desde que dê a elas aquilo que têm ou que pedem em oração. Mas quem sou eu para me julgar melhor do que elas?

Outra boa justificativa muito verdadeira que posso usar para minha maldade e meu egoísmo é que, se não agisse dessa forma, se não esquecesse as crianças famintas quando estou diante de uma bela fatia de pizza, se não esquecesse as pessoas doentes e abandonadas quando converso, sorrio e sou feliz com meus entes queridos, se não conseguisse abstrair da minha mente todo o mal que atinge milhões de pessoas eu não conseguiria viver. É fato, sou um animal humano e meus instintos de animal humano me impõe esse egoísmo, essa propensão a cuidar primeiro de mim mesma e das pessoas que amo e só depois, se me lembrar, se tiver tempo, se sobrar recursos, pensar em fazer alguma coisa por alguém que sofre. Mas sou também o animal que pensa, o animal que raciocina, pondera, cria linguagens, mitos, conceitos e verdades. E um dos mitos que crio é o de que sou uma pessoa boa e decente porque vivo minha vida sem causar mal a ninguém e procurando ajudar as pessoas sempre que posso, esse é o mito que camufla o meu egoísmo atávico e a maldade que é toda minha e que virá à tona se eu permitir ou se for de alguma forma colocada diante de uma situação na qual meu instinto tiver que gritar mais alto.

No livro 1984, de George Orwell, o personagem Winston tenta lutar contra o sistema, tem conhecimento da opressão em que vive e ama Suzanna, mas quando é torturado por O’Brien chega àquele ponto em que todas as suas resistências são quebradas e, sem mentira, fingimento ou revolta, deseja que toda a dor seja transferida para Suzanna, vê o que O’Brien quer que ele veja e adora sinceramente o Grande Irmão. Winston é um animal humano como eu, e muito provavelmente eu também tenho um ponto em que me entregaria totalmente como ele fez e, para mim, isso não mostra apenas minha fraqueza, mostra principalmente meu egoísmo e minha maldade. E me desculpe ser assim tão direta, mas penso da mesma forma a respeito de você.

O argumento fundamental que estou defendendo aqui é que, dentro do espectro daquilo que nós, animais humanos, costumamos denominar fazendo uso das palavras “maldade” e “egoísmo”, somos maus e egoístas, eu, você e cada um de nós. Acontece que esses conceitos têm nuances como as cores, há aqueles que têm em si essas características mais acentuadas e outros que as têm pouco menos intensas, mas todos nós as temos. O que acontece é que nós tendemos a praticar atos de maldade em diversos níveis - de moto próprio ou influenciad@s por outras pessoas que de alguma forma têm mais poder. E essa tendência a pensar, instigar, aceitar e praticar o mal parece ser mais forte quanto mais forte é o egoísmo. Ou seja, os mais egoístas são mais danosos aos outros e, ao mesmo tempo, tendem a obter maior sucesso. Quando penso no significado das palavras, concluo que estou chamando de egoísmo uma faceta do nosso instinto de preservação, a parte que faz com que a gente procure - e encontre - justificativas para nos preservar e nos preocuparmos acima de tudo com nosso corpo, nosso bem-estar, nossa vida e a qualidade dela. Vendo por esse ângulo, a maldade humana é um subproduto do egoísmo e é inerente a ele porque é também uma faceta do instinto de conservação e preservação que temos como animais que somos. Criamos outras versões e eufemismos para o que é basicamente egoísmo. Amor próprio é só o mais óbvio deles.

Voltando ao livro Sapiens, na página 17, temos que “No Homo Sapiens, o cérebro equivale a 3% do peso corporal, mas consome 25% da energia do corpo quando este está em repouso”. Acrescento ainda o livro Cérebro e Crença, de Michael Shermer que, na página 78, afirma que “Sempre que o custo de acreditar que um falso padrão é real for menor do que o custo de não acreditar em um padrão real, a seleção natural favorecerá a padronicidade”. Então, fico pensando em quanta energia é necessária para procurar fontes, pesquisar a validade das fontes, analisar conhecimentos obtidos e processar tudo isso relacionando conhecimentos novos e antigos entre si até tomar uma decisão, aderir a qualquer linha de pensamento, comportamento, crença ou postura. E, paralelo a isso, quanto de energia um cérebro consome para aceitar como verdade, sem um mínimo de análise, qualquer tipo de informação, opinião ou crença que lhe seja apresentada. Tenho certeza de que há uma diferença consideravelmente grande entre uma e outra situação. Pelo que já vi e li em várias fontes, a economia de energia é característica recorrente no mundo animal, por que seria diferente com o Homo Sapiens?

Daí que, entre a economia de energia, o egoísmo e o instinto de preservação, não parece muito difícil ser uma pessoa que, no mínimo, não se esforça muito para adquirir conhecimentos não práticos, e que em lugar de perceber e analisar contradições e mentiras procura negar a existência de tais contradições, de preferência de forma indireta, ou seja, usando argumentos de terceiros sempre e todas as vezes que essas contradições e mentiras nos favoreçam de alguma forma. Na verdade, arriscaria a dizer que, como indivíduos, os mais egoístas de nós estamos dispostos a gastar mais energia para justificar contradições e criar mentiras que nos favoreçam do que gastaríamos para desvendar essas mentiras e perceber e descartar essas contradições. A economia de energia e o instinto de preservação levam pessoas a se tornarem seguidoras de manada, a não pensarem e não se importarem em saber os danos que causam ou que não se dão ao trabalho de evitar. Não estou pensando apenas em extremos mais danosos e sim no fenômeno em si, que como tal comporta também o mais brando dos egoísmos, do qual um bom exemplo talvez seja a pessoa que passa toda a vida em auto privação praticando “o bem sem olhar a quem” e que talvez o faça com o objetivo de se tornar uma pessoa santa e, quem sabe até, merecer destaque em um livro de história de pessoas “iluminadas”. O egoísmo leva pessoas a serem más, ou a agirem com bondade - ou ilusão de bondade - por ambição, e essa ambição não precisa ser por dinheiro ou poder, pode ser por reconhecimento e simpatia.

Ser um herói ou uma heroína parece algo muito tentador e um mártir é uma espécie de herói. Quando sofro e exponho meu sofrimento, estou também chamando a atenção e me tornando mártir-heroína aos olhos da outra pessoa, quem garante que não estou exagerando esse sofrimento, ou mesmo buscando-o para ser vista dessa forma tão especial? Acho que muita gente faz isso, acho que muita gente FEZ isso. Acho que os mártires de qualquer religião (elas costumam ter muitos deles), além de alcançar o paraíso ou ter direito a setenta e duas virgens, se tornaram mártires também para serem admirados e louvados pela eternidade. Acho também que até mesmo inquisidores se tornaram ativos porque o “trabalho terrivelmente sofrido” deles aos seus próprios olhos (afinal, para um homem santo, infringir dor a alguém é um sofrimento atroz, não é mesmo?) era uma espécie de sacrifício que os levaria aos livros de história como mártires da fé. Madre Tereza de Calcutá é um exemplo recente e bem-sucedido de aparência de bondade egoísta e tremendamente má. Aposto que, enquanto negava alívio ao sofrimento das pessoas de quem “cuidava”, ela se regozijava por ser, além de merecedora do paraíso cristão, digna da imortalidade dada pela história.

Quando éramos crianças, um de meus irmãos tinha bronquite e tinha crises terríveis que algumas vezes obrigava meus pais a levá-lo ao médico e passava a noite no hospital. Como resultado disso e de já ter perdido uma filha, minha mãe tinha uma enorme preocupação com esse meu irmão. Eu e meu outro irmão nos sentíamos negligenciados e, muitas vezes, fingíamos dores e doenças para que nossa mãe desse a nós tanta atenção quanto dava a nosso irmão doente. A bronquite do meu irmão desapareceu quando ele cresceu e adquiriu mais resistência, mas sempre que me sinto doente, antes de dizer a alguém ou de procurar um médico, dou uma parada, procuro pelo sintoma com atenção e me pergunto: “Estou doente mesmo ou estou fingindo?”. Da mesma forma que me vigio para não fingir doença com o objetivo de receber atenção e cuidado do meu marido, preciso checar meus sentimentos, minhas opiniões e minhas ações para saber se não estou agindo pelo puro egoísmo, se não estou escondendo algum desejo ou intenção escusos e inconscientes por trás dessa opinião e dessa ação, preciso me vigiar para saber que não estou expressando - ou concordando com - opiniões que na verdade não tenho para que as pessoas pensem que sou uma pessoa boa, nobre ou inteligente.

Como animais sociais que somos, podemos negar à vontade, mas a opinião dos outros a nosso respeito importa sim! Precisamos trabalhar muito nossa personalidade para que consigamos deixar de valorizar a opinião alheia a ponto de permitir que isso determine nossas ações, mesmo que de forma inconsciente. Se você não o fizer, pode até mesmo ser levado a praticar atos de maldade, casando o egoísmo e a vontade de agradar com a economia de energia. Tento ser muito vigilante, evito expor meus problemas, lamentar minhas dores, reclamar da minha vida, fazer confissões muito íntimas para não correr dois riscos ao mesmo tempo: o de estar causando mal à pessoa com quem falo sobrecarregando-a com meus problemas quando ela certamente tem seus próprios problemas com que se preocupar, e o de estar, inconscientemente, procurando atenção, admiração e deferência, de estar fingindo que minhas dores são maiores do que na realidade são apenas para parecer melhor do que realmente sou. Para mim, o difícil de fazer isso é que nunca tenho uma resposta totalmente confiável porque sei que posso estar “fingindo que não estou fingindo”. Eu não sou confiável, acho que nenhum de nós é.

Como grupo, humano é um animal nocivo e predador que divide a própria raça em grupos denominados "nós" e "eles", sendo "eles" sempre aquele a ser inferiorizado, subjugado, eliminado. Enquanto houver essa divisão - e não vejo nenhum indício de que um dia ela deixará de existir - continuaremos sendo o animal que mata, tortura, extermina, aniquila. Por mais que a gente queira pensar de forma mais "bonitinha" e achar que somos "legais", a verdade é que somos tão terríveis que toda história de toda comunidade humana está plantada sobre a aniquilação completa ou parcial de outra comunidade humana e, se não tiver razão para o ódio, a gente inventa uma. É isso que somos... humanos.

Como indivíduo sempre tem os que são pacíficos - se viverem em condições tais que permitam sobrevivência sem luta - mas como raça somos mais irracionais do que racionais, ou melhor, usamos a racionalidade mais para matar do que para salvar. Na história das civilizações não houve período de paz. Investimos mais na fabricação de armas do que de remédios, e mesmo quando fabricamos remédios o fazemos mais por ambição do que por interesse em salvar vidas. Justificamos assassinato, tortura, preconceito usando invenções confortáveis chamadas religião, pátria e propriedade. Como disse Geoge Carlin e como demonstrou Saramago: Para nossa civilização tão “comportadinha" voltar à barbárie, basta apagar a luz.

Há os que defendem as crenças como solução contra todos os males, mas não acho que isso seja sempre positivo. Não mesmo! As três maiores religiões do planeta têm cada uma delas uma história de horror que é responsável pelo fato de terem se tornado tão grandes. E o que é válido para religião, é válido para outras crenças também. A política, o esporte, a família, a economia. Nossas crenças estão sempre entremeadas pelo "nós" - melhores, superiores, merecedores, eleitos - e o "eles" - inferiores, indignos, subjugáveis, indesejáveis, assassináveis. Tem crença positiva? Sim, com certeza! Mas essas são em geral bastante menos efetivas, menos gerais, mais frágeis e facilmente "porosas" às justificativas que conseguimos encontrar para agirmos de acordo com as crenças mais danosas. Uma pessoa pode acreditar sinceramente que somos todos iguais, que todos os seres humanos têm alma e podem alcançar o "reino de deus", seja qual for esse deus, mas pode, ao mesmo tempo, acreditar que os homossexuais são aberrações e culpados pelas agressões que sofrem; que estrangeiros devem ficar em seus lugares, não importa quanto esses lugares tenham se tornado perigosos; que matar um adolescente que pulou um muro com um tiro certeiro é algo perfeitamente válido e até louvável.

As exceções, que queremos que exista e às quais queremos e temos a pretensão de pertencer, não são insignificantes muito menos destituídas de importância, mas são, em geral, perdedoras. E são perdedoras porque lutam contra o que é padrão e o padrão é apelar para todo e qualquer artifício, por mais injusto, danoso e desonesto que seja, porque tudo podemos justificar com incoerências e artimanhas egoisticamente elaboradas. Para isso nossa racionalidade funciona maravilhosamente bem! O ser humano é capaz de coisas lindas sim, mas é bem mais capaz ainda de coisas horríveis. As guerras, os genocídios, as organizações criminosas travestidas de igrejas e nações, a história toda com seus rios de sangue que nunca pararam de jorrar mostram sempre que não somos uma raça da qual uma pessoa que faça parte dessa minoria perdedora possa se orgulhar. E ter consciência dos fatos pode ser bom: conhecer o inimigo, nesse caso, é conhecer a si próprio.

Sinto uma certa vergonha de me colocar como uma espécie de exceção, tenho consciência de que devo estar sendo prepotente em vários aspectos sobre os quais sequer tenho consciência. Sou professora e continuo lutando, não desisto e ainda tenho esperança de, pelo menos, ajudar a fazer com que a quantidade de exceções não diminua muito. Acho essa luta muito válida e necessária. Mas o fato é que não me deixo enganar, sei que somos animais e animais terríveis. Pode parecer contraditório o que estou dizendo, mas é justamente essa consciência da nossa animalidade que me dá força e vontade de continuar, e que, principalmente, me torna alerta para não permitir que esse lado animalesco determine minhas ações.


2 de março de 2019

QUEM É DEUS? DE QUE DEUS EU FALO?




I



É comum, diante de quaisquer textos com questionamentos que ousem ir contra religiões, religião ou deus, pessoas comentarem esses textos perguntando a que deus o autor do texto se refere; alguns perguntam: “Você está falando de Zeus, de Odin ou de Rá?”. Claro que quem faz essa pergunta quase nunca é um religioso fanático, embora muitas vezes seja um daqueles que são ou se acham muito cultos e por isso pensam que será muito fácil convencer essa ateia aqui de que o deus deles é muito diferente dos acima citados.

Os teístas mais suaves e tolerantes me informam de que mesmo que eu não acredite em deus ele acredita em mim, e afirmam ainda que deus (ou Jesus) me ama. Outros, entre o fanatismo e a tolerância, afirmam que sou uma infeliz, sem amor, frustrada e egoísta, e dizem que odeio deus porque sofri alguma grande perda e, por ser fraca e egoísta, culpei deus por isso; juram que um dia vou “receber uma graça”, enxergar a verdade e me arrepender de tudo o que digo. Já os mais fanáticos lamentam minha ignorância, me ofendem com palavrões e “convites” não muito aceitáveis e, invariavelmente, me ameaçam com o fogo eterno; às vezes acrescentam que eles estarão, no paraíso e envoltos em delícias, me vendo queimar e rindo do meu sofrimento, que será, segundo alguns, um motivo a mais para o seu deleite.

Quanto aos primeiros não tenho como não achar divertida essa ingenuidade contraditória – eles afirmam sempre que ninguém pode saber nada sobre deus, mas sabem que ele me ama e que acredita em mim; quanto ao segundo grupo não entendo como podem tirar tantas conclusões erradas sobre mim e sobre a minha vida com tanta convicção; e quanto aos últimos fico impressionada com a “piedade” deles e do seu deus-todo-bondade.

Os que me perguntam sobre que deus eu falo em alguns casos comentam a existência de vários deuses, citam deuses de várias religiões, relacionam vários conceitos ligados a cultos, mitologias e cerimônias do passado e do presente de várias culturas e de vários povos ao longo da nossa história. São informações válidas, interessantes e muitas vezes trazem novidades que são bastante úteis. Mas basicamente todo ateu sabe que existem e existiram muitos deuses na história da humanidade e eu também sei, não poderia deixar de sabê-lo sendo essa apaixonada por mitologia que fui desde criança, uma paixão que me levou a roubar do meu pai – nota a nota, moeda a moeda em malabarismos de aventuras e mentirinhas bem elaboradas – o dinheiro para completar a coleção Mitologia, publicada em fascículos nos anos 70, que li diversas vezes e que ainda hoje tenho, amarelada e envelhecida, em minha estante.

Também sou apaixonada por literatura e tenho muito interesse por história, inclusive história das religiões. Além disso, eu e muitos ateus também nos interessamos por livros e filmes de ficção científica, do tipo Isaac Azimov e Star Trek, portanto, alguns de nós temos conhecimento até mesmo de algumas projeções de deuses para o futuro, projeções que, diga-se de passagem, pelo menos pelo que vi até agora – e vi muito – não conseguem ser muito diferentes dos deuses de que temos notícias lendo história e atualidades.

Tudo bem que ninguém é obrigado a saber disso tudo a meu respeito apenas lendo um texto crítico de cunho religioso, mas um dos meus argumentos básicos sobre o ateísmo é que ser ateu não é uma ação, uma escolha, um desejo ou uma opção de vida; em geral não escolhemos o ateísmo como quem escolhe uma roupa para sair à noite. Ser ateu é antes de tudo uma reação, portanto, se um ateu tem que explicar de qual deus afinal está falando quando afirma que deus não existe e que as religiões são coleções bem guardadas de absurdos, o ateu, de qualquer lugar do mundo e de qualquer cultura, país ou comunidade – caso lhe seja permitido ser ateu sem que por isso seja punido severamente ou até mesmo morto – dirá ao religioso que fala de todo e qualquer deus, mas que fala especialmente de um deus. E qual seria esse deus? Respondo por mim e acho que por todos os ateus: De que deus eu falo? Ora, gente, falo do deus de que me falam!

No meu caso específico falo principalmente do deus judaico-cristão, isso porque vivo em uma cultura predominantemente católica e predominantemente cristã e, portanto, é do deus judaico-cristão que estiveram me falando desde minha mais tenra infância e é da existência dele que sempre tentaram, e ainda tentam, me convencer. Se tivesse nascido na Arábia, no Iraque, no Egito ou em qualquer outro país muçulmano, e se porventura pudesse fazê-lo sem correr o risco de ser assassinada, estaria falando de Alá; e se tivesse nascido judia, estaria falando do deus judeu, aquele que está na torá e no talmude e que é o mesmo deus dos cristãos, e também o mesmo deus dos muçulmanos, no fim das contas.

Esse é o deus, ou esses são os deuses, cuja existência os teístas tentam afirmar a qualquer custo e que, em alguns casos muito infelizes, tentam – e às vezes conseguem – impor pela força e a custa de muito sofrimento e muitas mortes. É também o deus, ou são os deuses, que os ateus mais radicais tentam negar com veemência, quando podem fazê-lo sem perder a vida.

Dizem – principalmente os teístas que aceitam debater com ateus – que a história mostra que ateus fanáticos podem impor sua não crença com atos de violência tão danosos quanto têm sido os crimes praticados pela intolerância religiosa. Fico sempre muito reticente quanto a isso porque os exemplos que dão não me parecem ser de imposição do ateísmo pura e simplesmente, mas sim de imposição de mais um sistema de governo autoritário e ditatorial que, nesses casos, incluem a proibição de todas as religiões; da mesma forma que outros casos de outros sistemas de governos autoritários incluem a proibição de todas as religiões exceto uma, aquela que esse ditador usa como justificativa para suas práticas.

Quero crer que não estou me comportando como uma ateia radical, principalmente porque tento não ser intolerante e jamais aceitaria participar de qualquer tipo de ação que pudesse ser sequer parecida com uma imposição de crença, de falta de crença ou mesmo da imposição de uma determinada postura, com respeito à religião, à ausência de religião ou a qualquer outro assunto. Na verdade, mesmo os ateus mais radicais, pelo menos até onde eu vi, não tentam impor sua não crença a força como fazem os religiosos fundamentalistas, em geral toda a violência do radicalismo ateu se resume a duvidar, ironizar e negar, algumas vezes de forma equivocada e até muito desrespeitosa, a inteligência de todas as pessoas que acreditam em deus.

Concordo que essas não são atitudes muito pacíficas e educadas, concordo que os teístas menos radicais e até mesmo os próprios ateus mais moderados não deixam de ter uma certa razão quando protestam contra esse “radicalismo ateu”, mas o fato é que os ateus não tentam usar força física para obrigar ninguém a deixar de acreditar. Eu nunca vi radicalismo ateu que fosse além de palavras, em geral escritas.

Então, como disse, procuro não ser e nem parecer uma ateia radical, embora minhas experiências tenham mostrado que para muitos religiosos – principalmente os mais fundamentalistas – apenas dizer-se ateu já é radicalismo suficiente. E não, eles não percebem a contradição.

Vejo-me apenas como uma pessoa que não compreende o que afirmam ser a “verdade”, uma pessoa que pensa muito a respeito do que ouve e lê, uma pessoa que, à força de teimar em pensar sem as travas da fé, tira conclusões diferentes do que comumente percebe na maioria das outras pessoas. Sou alguém que sempre que pode coloca suas questões, fala sobre seus pensamentos e revela suas conclusões; mesmo correndo o risco de irritar muita gente.

O deus defendido pelo teísta e negado por mim é, em geral, definido – pelo teísta, é claro – como um tipo de entidade suprema além e acima da matéria. Ele é o Criador[1] do mundo, do universo, da natureza, do homem. Ele é o criador de tudo que, curiosamente, não criou o mal; ou não é responsável pela existência do mal mesmo que o tenha criado.

Esse argumento não convence quem não tem o privilégio de ter a inabalável fé de um teísta porque, se usamos apenas a lógica em lugar de apenas a fé e o medo, podemos ver que não é possível livrar a responsabilidade de deus pelo mal e pela existência do mal. A verdade racional é que só ateus podem afirmar que deus não criou o mal, já que para o ateu deus não existe e o que não existe não cria nada. Os teístas, por mais que pensem o contrário, não podem dizer isso sem estarem quebrando uma lógica mais do que perceptível; e contrariando a bíblia, claro[2].

Enfim, deus é o criador transcendente basicamente dotado de cinco características que lhe são próprias e essenciais: justiça, bondade, onipotência, onisciência e onipresença. Da mesma forma que quando definimos um quadrado como sendo uma figura geométrica com quatro lados de mesmo comprimento e quatro ângulos retos estamos automaticamente dizendo que qualquer coisa que não seja uma figura geométrica, que não tenha quatro lados iguais e que não tenha quatro ângulos retos não será um quadrado, quando definem deus como sendo o criador justo e bom, onipotente, onisciente e onipresente, estão automaticamente dizendo que qualquer ser, existente ou não, que não tenha essas características – sejam algumas delas ou mesmo uma única – não será O deus.

Podemos, por exemplo, falar de outras figuras geométricas, mas se não tiverem quatro lados iguais e quatro ângulos retos, elas não serão quadrados, da mesma forma podemos falar de um deus que não tenha uma, ou mais de uma, das características que os teístas usam para definir seu deus, esse ser assim, digamos, incompleto pode até ser um deus – como os da mitologia greco-romana – mas não será o deus de que me falam.

Nunca bateram à minha porta para trazer a palavra de um deus que criou uma parte do universo; nunca armaram aparelhos de som na praça aqui do lado de casa para gritar e louvar um deus poderoso mas não muito; nunca entraram em um ônibus em que eu estivesse para dizer que preciso amar e respeitar um deus que é bonzinho só de vez em quando; que eu saiba ninguém vai à igreja para rezar ou orar a um deus que pensa que pode não estar lá; eu nunca soube de alguém que estivesse pedindo uma graça a um deus achando que ele pode não saber como fazer esse milagre; e finalmente, nunca ouvi algum religioso dizer que devemos ser bons porque uma vez ou outra deus é justo.

Enfim, o deus de que me falam tem todas as características que o definem, todas juntas e todas em grau máximo, não falta nenhuma, nenhuma é menos do que o máximo. Um deus que não seja assim será outro deus; será um personagem mitológico, será uma fantasia, será parte do folclore de um povo, será, como gostam de dizer os evangélicos, um falso deus.

O pintor belga René Magritte tem um quadro famoso que nos mostra um desenho muito realista de um cachimbo e sob ele a inscrição “Ceci n’est pas une pipe” – isso não é um cachimbo – alguém que veja o quadro pela primeira vez pode estranhar, afinal, aos olhos de qualquer um, o objeto representado ali é sim um cachimbo. Quando disseram a Magritte que o que ele fez foi sim um cachimbo, ele respondeu: "OK, você deve tentar enchê-lo de tabaco então".

Se alguém me mostrar um dado colorido, piramidal, daqueles usados para jogar RPG e me disser que é um quadrado porque é uma figura geométrica que tem lados e ângulos, não poderei aceitar o argumento. Da mesma forma que a pintura de Magritte apresenta alguns aspectos de um cachimbo mas não o suficiente para SER um cachimbo, um dado de RPG piramidal apresenta algumas características de um quadrado mas não o suficiente para SER um quadrado.

É mais ou menos isso que acontece quando tentam me dizer que não é possível provar a inexistência de deus. Se estivessem tentando me convencer da existência de um deus que não criou tudo, apenas algumas coisas; que não é onipotente, apenas muito poderoso; que não é onisciente, apenas conhece muita coisa; que não é onipresente, apenas passeia muito e, se você der sorte, ele pode estar por perto quando você precisar; aí então eu precisaria de outros argumentos para explicar por que não acredito nele.

Mas se o seu deus é o criador único de tudo que existe, se é onipotente, onipresente, onisciente, onibenevolente e justo então o fato mais do que comprovável logicamente é que esse deus não existe. E essa é a minha tese principal: não é verdade que não se pode provar a inexistência de deus, SE estivermos falando do deus das religiões monoteístas que predominam no mundo, do deus cuja existência é e foi defendida historicamente por muitos filósofos, cientistas e gênios nas mais diversas áreas do conhecimento, então sua inexistência pode ser provada sim.

Dizer que não se pode provar a inexistência não é uma verdade completa. Você pode provar a não existência de um triângulo quadrado definindo essas figuras geométricas e dessa forma mostrando que elas são logicamente excludentes e que a existência de um triângulo quadrado é uma impossibilidade lógica. Alguém que insistisse em afirmar que existe um triângulo quadrado estaria sendo irracional.

A simples definição do que é um quadrado exclui a possibilidade de que um triângulo seja quadrado ou um quadrado seja triangular, a inexistência dessas figuras paradoxais está provada pela definição de cada uma das figuras geométricas independentemente do que alguém possa dizer em favor delas. É claro que não existem pessoas afirmando a existência do triângulo quadrado e ninguém nega que, caso uma criança me perguntasse se isso existe, eu não estaria faltando com a verdade se dissesse que não.

Outro exemplo: Digamos que vou à sua casa e digo que você deve se mudar imediatamente porque eu sou a nova proprietária e tenho um documento que prova isso. Você vai querer ver esse documento e quando eu disser que o documento é invisível e imaterial você pensará que estou louca ou que estou brincando com você. Documentos de propriedade são textos escritos em papel, reconhecidos em cartório e assinados por pessoas em determinadas funções e com determinada autoridade. Qualquer coisa diferente disso não poderá ser um documento de propriedade e não terá valor como tal.

Se eu digo que o meu documento de propriedade foi escrito com uma luz mágica em uma nuvem invisível e que foi assinado pelo extraterrestre que é o proprietário original do planeta, você pode até suspender o julgamento sobre o extraterrestre, mas não vai aceitar que qualquer coisa que ele escreva seja um documento de propriedade válido.

Qualquer coisa que eu apresente e que não seja um papel, um papel de celulose, palpável e visível, registrado e assinado pelos órgãos e pessoas competentes simplesmente não será um documento de propriedade válido e não terá o poder de fazer com que você abandone sua casa legalmente. Você e qualquer pessoa dirá que não existem documentos de propriedade escritos com luz mágica em nuvens invisíveis porque documento de propriedade é definido como papel, reconhecido em cartório e assinado por pessoas em determinadas funções e com determinada autoridade. Você poderá recorrer ao dicionário e com isso provará que esse documento não existe e que eu não posso tirá-lo de sua casa.

Portanto, você pode sim provar a inexistência de algo se o algo que for apresentado como sendo aquele ser ou aquela coisa não corresponder às definições do que seja esse algo. Se uma determinada coisa não possuir as características que definem determinado ser, essa coisa – existindo ou não – não poderá ser aceita como sendo o ser cujas características não possui; ou seja, não existirá como o ser cujas características não possui.

Tentando ser ainda mais clara: se zulix é definido como um objeto octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix, qualquer coisa que me apresentem e que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix não será um zulix porque não existe “zulix” octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix.

Mesmo que eu não possa provar que o objeto que me foi apresentado como sendo um “zulix” não existe porque podem ter mostrado apenas uma foto ou filme, eu posso provar que “AQUELE zulix” que me apresentaram, porque não é octogonal macio e sonoro e não foi fabricado pela brinkedix não existe, aquele zulix não existe porque não existe zulix que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix uma vez que a definição de zulix é “um objeto octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix”.

O tal objeto apresentado pode existir ou não, mas não será um zulix, não existirá como zulix. E se eu souber que não existe nenhum objeto com a definição que foi dada para definir um zulix, por exemplo, porque a brinkedix nunca fabricou um objeto octogonal macio e sonoro então posso concluir – e provar – que zulix não existem. Pronto! Apresentei provas de inexistência!

O problema é que, lendo alguns filósofos com suas teodiceias e ouvindo alguns teístas com seus argumentos de fé, acabei por perceber que, para os que não abrem mão de acreditar e de tentar convencer, vale até mesmo tirar ou enfraquecer algumas das características básicas de deus; desde que isso não fique muito óbvio para o ouvinte ou leitor comum. É como dizer que um zulix octogonal macio e sonoro é um quadrado duro e silencioso; ou só levemente octogonal, um pouco macio e de vez em quando silencioso.

Debati com um teísta que, durante a conversa e para não abrir mão da sua verdade, tirou não uma ou outra mas todas as características definidoras do deus que estava defendendo. Esse teísta me disse que quando deus surgiu o universo já existia e já estava povoado por outros seres, portanto deus não pode ser culpado pela criação de nada; disse que deus é o Tudo e o Nada e que isso significa que deus pode ser bom ou mau, justo ou injusto; disse que deus é onipotente mas não pode tudo “só porque você quer que ele faça isso”; disse que deus é onisciente mas só sabe das coisas depois que elas acontecem ou, nas palavras dele “depois que algo tem início”. Por essas características todas (ou falta delas), defendia ele, deus não é culpado por absolutamente nada do que acontece ou tenha acontecido, nós sim, por o termos desobedecido, somos culpados por tudo.

Esse teísta ficou tremendamente ofendido quando eu disse que ele estava me descrevendo um deus bipolar e inútil e argumentou que deus não existe só para ser útil “como um kit da Kodak”. Ah, e ele usava a bíblia para cada uma de suas afirmações; mais uma prova de que a bíblia pode ser usada para justificar qualquer coisa. Fiquei pensando como pode a necessidade de acreditar levar a tão completa incoerência. Depois disso fica até possível compreender o fato de os outros teístas não conseguirem perceber a incoerência do deus em que creem. Talvez.

Então fico pensando que, no final das contas, as pessoas chamam de deus simplesmente tudo aquilo que querem acreditar que existe e que interfere na vida delas, se importa com elas; querem chamar de deus aquele ser que ama, conhece, aceita e compreende incondicionalmente a maneira como elas são e se comportam, e que as perdoa quando erram. Elas chamam deus a elas mesmas!!



[1] “Só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”. In: Neemias 9:6.
[2] "Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas". In:  Isaías 45:7

17 de janeiro de 2019

ANTEPASSADOS E DESCENDENTES


        Não entendo a importância que algumas pessoas dão às chamadas ligações de sangue. Não consigo perceber qual é a graça da ficar fuçando minha árvore genealógica para descobrir de onde vieram e quem foram meus antepassados. Tenho certeza absoluta de que se fizer isso vou descobrir pessoas comuns, pessoas escrotas e pessoas decididamente abomináveis, tenho certeza de que é isso que tem na árvore genealógica de todo mundo. Por que procurar esse tipo de coisa? Eu, decididamente, não quero saber quantos estupradores agiram durante quanto tempo e quantas vezes até chegar à coincidência de meu pai encontrar minha mãe e eu nascer. Será mesmo que alguém acha que não vai encontrar estupradores em sua árvore genealógica? Tudo bem, filho, você pode não encontrar, mas não porque eles não existiram e sim porque há falta de dados. Eu não quero saber essas coisas!


          “Mas você pode descobrir um nobre!” E daí? Quem fica orgulhoso só porque descobriu que tem um ou mais nobres na sua árvore genealógica, na minha opinião, tem muita chance de ser a pessoa escrota da árvore genealógica de alguém no futuro, se tiver descendentes! Quem disse que um nobre não pode ser justamente a pessoa mais abominável da árvore genealógica de alguém? Para mim a chance de ser assim é muito grande. E, mesmo que você descubra que um casal antepassado seu foi o rei e a rainha mais humanos e mais justos do melhor dos reinos de contos de fadas, o que isso faz de você? Nada! Você não é nem o rei nem a rainha cujos nomes aparecem em uma folhinha da sua árvore! Você é você! Só isso ou tudo isso, independente de quantos reis e rainhas e de quantos estupradores tenham trepado para que você nascesse!


Durante toda a minha vida, em todos os lugares em que vivi, em todos os grupos que encontrei e dos quais fiz parte, sempre houve pessoas das quais gostei muito, pessoas que me foram indiferentes e pessoas das quais não gostei tanto assim. Um desses grupos dos quais estou falando se chama “minha família”, e acho que é a mesma coisa com todo mundo. É normal. Certo que a proporção pode variar, você dar uma sorte “duca” e fazer parte de um grupo no qual não tem gente escrota. Que bom! Mas isso não é regra, e você pode simplesmente não ter percebido a pessoa escrota do grupo, ou pior, você pode ser essa pessoa! 


Pessoas são assim: algumas são maravilhosas, algumas são legais, algumas são absolutamente sem tempero, algumas são desagradáveis, algumas são escrotas, algumas são tremendamente escrotas e algumas são decididamente abomináveis! E não esqueça de que essa escala de classificação que você percebe em um grupo, geralmente e na maioria das vezes, é meramente sua opinião e dificilmente você vai perceber em que ponto dela você está. Aliás, quanto a mim, sempre tenho em mente que meu cérebro é um tremendo trapaceiro e está o tempo todo tentando me convencer de que estou na ponta do “pessoas maravilhosas” mas isso provavelmente não é verdade. Eu não sou besta de acreditar no meu cérebro quanto a isso!


Bem, se é isso o que acontece em todos os grupos, por que cargas d’água na sua árvore genealógica vai ser diferente? E o que isso tem a ver com você? Quanto a mim não vejo nenhum sentido, nenhuma necessidade, nenhum ganho, nenhuma importância nesse tipo de pesquisa. Pelo contrário, eu prefiro não saber! Não quero saber o nome do filho da puta que estuprou minha tetravó e que deixou um rastro enorme dos seus genes nojentos no meu sangue! Não quero saber o nome do assassino ou da assassina, do escravocrata, do pedófilo, do cara ou da mulher que teve frenesi de gozo assistindo a queima de uma “bruxa” ou o apedrejamento de uma adúltera. Eu não quero saber essas coisas! E, pior, eu sei que encontraria isso se procurasse e se pudesse ver todo o caminho de sangue e esperma que me gerou. O meu consolo e prazer é saber que não tenho nada a ver com isso, é saber que o descendente de um serial killer pode ser uma pessoa decentíssima e o descendente de um santo pode ser um serial killer.


E quanto a descendentes o raciocínio não é muito diferente. Se a raça humana durar muito tempo, é possível que serei parte da árvore genealógica de alguém, mas e daí? Que importância tem isso para mim? Eu estarei morta! Não entendo a preocupação que algumas pessoas têm em ter filhos e netos com o objetivo de deixar descendentes. Meu pai uma vez manifestou essa preocupação, ele me disse que achava importante que o sangue dele perdurasse muito além dele, eu não entendi qual a importância disso quando ele falou e eu era pouco mais que uma criança e não entendo a importância disso hoje, quando vejo uma ou outra pessoa manifestando essa mesma ideia. Se tive descendente ou não, isso não vai importar em nada para a minha vida depois que eu não existir, e se tiver uma linha enorme de descendentes ao longo de séculos no futuro, sei que essa linha seguirá a mesma regra dos antepassados, terá gente de todo o tipo, inclusive gente muitíssimo escrota e gente absolutamente abominável. E eu não tô nem aí pra isso porque não vai me afetar!


Acho que o meu caráter não depende de nenhuma pessoa que viveu centenas de anos antes de mim ou de qualquer pessoa que vá viver centenas de anos depois. Claro que posso estar enganada e no futuro a neurociência descobrir que cada traço do caráter de uma pessoa e cada escolha que ela faça já está determinada na sua genética. Não tenho como afirmar que isso não é verdade mas, hoje, o máximo que posso dizer é que não sei e por não saber não vou agir como se assim fosse. Sem provas não acredito, é por isso que sou ateia. Então, se meu caráter não depende nem de meus antepassados longínquos nem de meus longínquos descendentes existirem ou não, simplesmente não vejo nenhum motivo para me preocupar com isso. A única coisa da qual tenho certeza (até prova em contrário) é que um dia não existirei mais, nem como lembrança, nem como registro, nem como sombra, fantasma ou vestígio. E isso me parece muito bom!




2 de novembro de 2018

DEPOIS DA ELEIÇÃO EM QUE O ÓDIO VENCEU

Durante pelo menos quatro anos eu desejo muito que nenhum aluno negro de um professor que votou no ódio seja morto por “parecer” bandido (pela cor da pele) em nome da máxima “bandido bom é bandido morto”. Porque se acontecer eu vou querer muito também que esse professor que votou no ódio saiba que ele é culpado pela morte do seu aluno.
Durante pelo menos quatro anos eu desejo muito que nenhum filho de nenhum negro que votou no ódio seja morto por “parecer” bandido (pela cor da pele) em nome da máxima “bandido bom é bandido morto”, porque se acontecer eu vou querer muito também que esse negro que votou no ódio saiba que ele é culpado pela morte de seu próprio filho.
Durante pelo menos quatro anos eu desejo muito que nenhum filho de nenhuma mulher negra que votou no ódio seja morto por “parecer” bandido (pela cor da pele) em nome da máxima “bandido bom é bandido morto”, porque se acontecer eu vou querer muito também que essa mulher negra que votou no ódio saiba que ela é culpada pela morte de seu próprio filho.
Durante pelo menos quatro anos eu desejo muito que nenhum namorado, marido, namorada ou esposa de nenhum(a) homossexual que votou no ódio seja morto(a) por “ser uma bichona” ou por “ser uma sapata”, porque se acontecer eu vou querer muito também que esse(a) homossexual que votou no ódio saiba que ele(a) é culpado(a) pela morte do seu afeto.
E, me desculpe, mas se você votou no ódio, durante pelo menos quatro anos você será culpado(a) pela morte de todo negro inocente ou culpado que seja morto, sem direito a defesa, em nome da máxima “bandido bom é bandido morto” institucionalizada pelo ódio no qual você votou; você será culpado(a) pela morte ou pelo estupro de toda mulher que seja agredida em nome do machismo institucionalizado pelo ódio no qual você votou; e você será culpado(a) pela morte de todo homossexual que seja assassinado em nome do “viado e sapata têm mesmo é que morrer” institucionalizado pelo ódio no qual você votou. Para mim será sempre como se você tivesse puxado a arma (seja ela qual for) e a usado no corpo indefeso. Se for um amigo, familiar, aluno, inocente, você será igualmente culpado.
E se você é um cristão que votou no ódio, eu tenho certeza de que, se o Jesus Cristo no qual você diz que acredita e ao qual você diz que adora, caso exista, vai manter você MUITO longe dele porque ao votar no ódio você mostrou que não aprendeu NADA das lições às quais diz amém nos cultos ou nas missas. Afinal, Jesus, se existiu, foi um comunista (dividiu o pão por igual a todos), foi um esquerdopata (expulsou os vendilhões do templo e não aceitou as regras vigentes) e por não obedecer as leis foi preso e torturado, o que, na sua concepção ou na concepção do ódio no qual você votou, só acontece com quem não pode mesmo ser grande coisa e, por isso, “recebeu o que mereceu”.
Você que votou no ódio esqueceu a lição de “dar a outra face”, esqueceu a lição de “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, esqueceu a lição de quem expulsou os vendilhões do templo, esqueceu as lições de quem andava com prostitutas e ladrões e respeitava a todos igualmente. Você que votou no ódio, se Jesus existir, não vai ter o direito de se aproximar dele, seu lugar será outro.
Então, aconselho você que votou no ódio a se tornar ateu, assim não precisará temer o inferno, que é para onde ele afirmou que irão os que se dedicam ao ódio e não ao amor; ele, o Jesus que você diz amar mas não ama, porque votou no ódio e esqueceu o amor.

ARGUMENTAÇÃO E FORMIGAS



Diante de um determinado assunto – seja um daqueles chamados “polêmicos” ou não – o comportamento de qualquer pessoa deve ser a análise lógica e a tomada de uma posição embasada em conhecimento. Nunca tomar posição sem nenhuma informação ou com poucas informações aleatórias e não verificáveis sobre aquilo. Existe mais de uma razão para alguém tomar um determinado fato como verdade, veremos que nem sempre essas razões se justificam e nem sempre são suficientes.

Digamos que um garoto – vamos chamá-lo de Zé – tem dois ou três aninhos e pela primeira vez na vida, em um passeio com a família, vê uma formiga. O garoto se espanta e se encanta com o minúsculo animal e o pai, que está ao lado dele, informa: “Isso é uma formiga, cuidado porque elas picam e a picada dói muito. Para você se lembrar: todas elas são assim, muito pequenas e marrons”.

O pai não mentiu. Sempre viveu na cidade e raríssimas vezes viu formigas, só conhece formigas assim pequenas e assim marrons. Como não é um biólogo e como nunca se interessou por esses animais a ponto de procurar mais informações do que as que adquiriu nas poucas vezes em que viu formigas, para ele só existem formigas assim pequenas e assim marrons. Ao mesmo tempo, Zé é muito pequeno e para ele a palavra daquele adulto é totalmente confiável. O pai, juntamente com a mãe, é o ser mais próximo e mais conhecido; é o adulto mais amado e o ser do qual ele é totalmente dependente. Zé toma todas as informações vindas do pai como a Verdade. Sequer ocorre a essa criança a possibilidade de questionar a informação recebida. Portanto, para Zé, a partir daquele momento, ele conhece formigas: São animais pequeninos como aquele e marrons como aquele do qual o pai mandou que ele mantivesse distância porque formigas picam e a picada dói muito. Zé se afasta totalmente confiante de que sabe tudo o que há para saber sobre formigas.

Poucos anos depois, Zé está na escola, tem um livro nas mãos e a professora informa a sala de que aquele animal descrito e ilustrado com um desenho em preto e branco na página 8 é uma formiga, que esse nome começa com a letra F e, quando ele pergunta, a professora informa que também existem formigas pretas como aquela do desenho. Zé agora tem outro adulto diante de si ensinando sobre o mundo, e esse adulto apresenta as informações com a ajuda de um livro, de desenhos, esse adulto é a professora e, para ele, ela é muito sábia e as informações que ela dá são tão ou mais confiáveis do que as informações que o pai dá. À noite, Zé informa o pai de que existem formigas pretas, o pai acredita porque a professora disse e a professora sabe. Se até o pai confia no que a professora diz, então está decidido: A partir daquele dia, para Zé, formigas são animais muito pequenos que picam muito dolorido; tem dois tipos de formiga, uma marrom e outra preta. Zé vai dormir totalmente confiante de que sabe tudo o que há para saber sobre formigas.

Mais alguns anos se passam e Zé está no ensino médio. Nessa altura ele já sabe que os conhecimentos do pai são bem poucos comparados aos conhecimentos dos professores do ensino médio e sabe, ou julga saber, que mesmo entre esses professores tem alguns que não sabem muita coisa além do que ensinam. Alguns, na opinião do adolescente rebelde em que Zé se transformou (junto com a maioria dos colegas de sua idade) não sabem nada de muita coisa porque são velhos e ultrapassados demais. Mas tem os livros didáticos e eles trazem muitas informações com ilustrações e fontes como nomes e endereços de jornais e revistas ou datas de divulgação e nomes de emissoras de canais de televisão. Então, mesmo que não goste do professor que está passando aquela informação – porque é muito bravo, porque é muito exigente ou porque é muito velho – Zé se sente forçado a acreditar no que ele ensina porque e quando a informação está também no livro didático. E é nessa carteira escolar, em uma sala de aula do ensino médio, que Zé aprende que existem formigas bem maiores do que as que ele achava que conhecia e que, além das marrons e das pretas, existem também formigas vermelhas, amarelas e até brancas. Agora ele tem certeza de que sabe tudo o que há para saber sobre formigas.

Zé está certo, esse será todo o conhecimento que terá e será o suficiente para falar sobre formigas, se um dia precisar, e dar informações sobre elas a quem não as conheça e até poderá entrar em debate com uma pessoa que acredita, como ele já acreditou, que só existem formigas marrons ou pretas. Zé tem mais informações e pode até dar referências para quem não acredite na palavra dele sobre a existência de formigas vermelhas, por exemplo.

Mas, e se mais tarde, ou ainda nessa fase do ensino médio, Zé optar por um curso de biologia e, mais tarde ainda – com mestrado, doutorado e estudos de campo em uma área específica da entomologia – Zé se tornar um mirmecologista, palavra que em sua carteira na sala de aula do ensino médio, Zé não conhece? Se for estudar formigas, Zé descobrirá que todo o seu conhecimento do ensino médio sobre elas, por mais correto e embasado que fosse, estava muito longe de ser tudo o que há para saber sobre formigas.

Qualquer outro assunto, qualquer outro tema, qualquer outro conhecimento a que qualquer pessoa tenha acesso segue, com poucas e específicas variações, as mesmas regras que vimos quanto ao conhecimento sobre as formigas adquiridos por Zé. Então, para sermos razoáveis, não podemos aceitar nenhuma informação como verdade antes de termos embasamento mais confiável do que a palavra de uma pessoa que não apresente mais do que uma opinião baseada somente em experiências pessoas restritas, por mais amada e confiável que essa pessoa seja para nós. E mais, devemos ter a humildade de aceitar que mesmo nosso conhecimento mais embasado, na maior parte dos casos, está longe de ser tudo o que se pode saber a respeito daquele assunto.

Portanto, quer opinar sobre algo? Informe-se! Quer argumentar sobre uma opinião que tenha? Pesquise! Se o assunto admite posições contrárias, ouça o outro lado com respeito porque sempre existe a possibilidade de a outra pessoa ter alguma informação que você não tem; daí você poderá aprender mais. E, finalmente, quer saber tudo o que há para saber sobre algo? Dedique muitos anos ao estudo daquele assunto, torne-se um especialista, só aí sua palavra poderá servir como referência. E saiba: Se você estudar muito e muito a fundo um assunto, descobrirá que nunca vai saber “tudo o que é possível saber sobre isso”. Mas, estudando muito sobre um assunto você poderá se tornar um dos degraus na escada do conhecimento; essa escada infinita que os estudiosos do futuro percorrerão, avançando mais um pouco, graças ao que você aprendeu e ensinou.

Duvide sempre de toda e qualquer informação que seja dada com a roupa estreita da “verdade definitiva”.


15 de outubro de 2018

QUEM EU SOU

Copiei, na cara dura, uma lista que encontrei no Facebook e ajeitei essa lista para torná-la mais pessoal... mais minha. Não dou crédito porque a pessoa de quem copiei a lista diz que também a adaptou. Então lá vai minha lista, que poderia se chamar “Lista do SOU EU”.

• Para mim, bandido bom é bandido julgado sem privilégios e de forma imparcial. Deve ser preso preventivamente e por tempo limitado apenas se apresentar perigo à sociedade, o julgamento não pode ser adiado ou demorado por questões econômicas, sociais ou quaisquer diferenças que configurem descaso de uns e privilégios de outros e, se for condenado, o bandido deve cumprir a pena cabível em presídios que priorizem e deem condições para que o detento seja ressocializado.
• Afirmo que criminosos de colarinho branco também são bandidos e têm que ter exatamente o mesmo tratamento que qualquer outro bandido, seja negro, pobre, favelado, analfabeto, o que for. Nunca, em hipótese alguma, um criminoso deve ter privilégios que outros não têm.
• Pedofilia é crime e confundir homossexual com pedófilo deveria ser crime também.
• Não sou pró-família, sou favorável ao direito de qualquer pessoa constituir família com quem quiser, como quiser e se quiser.
• Sou favorável à criminalização de pessoas que tentem impedir o relacionamento consensual entre pessoas adultas, independentemente do preconceito ou religião que aleguem como razão para o preconceito.
• Sou contra a erotização de crianças, mas a favor da educação sexual nas escolas.
• Sou terminantemente contra qualquer tipo de abono, auxílio ou privilégio da classe política, ou de qualquer classe trabalhadora que receba salários adequados e compatíveis a uma vida digna e confortável.
• Acho que cotas devem existir para pessoas de classes sociais menos favorecidas, para negros, indígenas e pessoas com deficiência, até que a sociedade se torne decente e as cotas não sejam mais necessárias.
• Para mim, os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos teriam que ser parte central da Constituição e teriam que ser respeitados.
• Tenho certeza de que policiais, professores e profissionais da saúde deveriam ganhar mais do que deputados e senadores e as escolas, os hospitais e os presídios deveriam funcionar em prédios mais modernos, bem equipados e bem cuidados do que qualquer Senado, Congresso, Câmara ou Prefeitura.
• Sei que o Estado tem que ser laico e tem que se comportar como tal cuidando de forma efetiva para que todas as religiões sejam respeitadas igualmente sem que nenhuma tenha privilégios que não sejam estendidos a todas. Ser a religião da maioria nunca deve servir como desculpa para diferenças de tratamento, e esse respeito deve ser estendido igualmente aos que não seguem nenhuma religião e aos ateus.
• O feminismo protege a mulher e para mim quem acha o contrário é no mínimo mal-intencionado e deve ser penalizado legalmente por qualquer discurso de ódio à mulher ou apoio ao machismo.
• Acho que o puro preconceito contra qualquer grupo ou etnia deve ser considerado legalmente abominável e passível de pena.
• O aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública, e apenas argumentos e debates científicos especializados poderiam servir como parâmetro para quaisquer restrições a ele.
• Vejo como necessidade primeira a criação e permanência de políticas públicas que beneficiem as minorias, durante todo o tempo em que elas forem necessárias.
• Meritocracia é tema a ser levado em conta apenas quando não houver mais privilégios alheios ao merecimento e quando as ações afirmativas se tornarem desnecessárias.
O único tipo de debate político envolvendo a questão da homossexualidade a ser aceito tem que ser o que envolver planos de prevenção à violência ou de garantia aos direitos desses cidadãos.
• Sou a favor da educação e saúde públicas de qualidade, universais e gratuitas para toda a população.
• Todos os funcionários públicos e suas famílias, do faxineiro ao presidente, devem utilizar apenas os serviços públicos de saúde e educação para que possam melhor avaliá-los e garantir sua qualidade.
• Teria que haver, junto ao salário mínimo, um teto salarial nacional que oscilasse de acordo com o salário mínimo a fim de garantir que a diferença entre um e outro nunca se tornasse grande a ponto de um dos lados ser roubado do seu direito a uma vida digna.
• A mídia deve ser imparcial, sem carteis e famílias intocáveis. Deve priorizar programas educativos e informativos e receber punição legal diante de qualquer abuso para que nunca possa se tornar o quarto poder com mais poder real do que o executivo, como tem acontecido ao longo da história.
• Para mim, deveria haver na Constituição um artigo que especificasse que uma pessoa que tenha manifestado, via ação ou discurso, simpatia, conivência ou apoio a qualquer tipo de pensamento ou ação contrários à Declaração Universal dos Direitos Humanos não poderá ser candidato ou ser eleito a qualquer cargo público.

5 de outubro de 2018

ERRO DE AVALIAÇÃO

(Originalmente publicado em 06/05/2015)

Apresentação

Começarei dizendo o óbvio a respeito dos avanços científicos, relacionando aquilo que é fato, que todos sabemos e que entristece, sempre, os que pensam nisso. Depois, ainda falando do óbvio, descreverei o estado precário da educação no país, a falta de receptividade dos alunos e dos responsáveis por eles e o quanto tem sido frustrante a luta por uma educação de qualidade. Por fim concluirei argumentando que nós, professores e educadores, talvez estejamos lutando do lado errado. Talvez a melhor coisa a fazer seja nos unirmos em batalha para que se apague de todas as Constituições do mundo qualquer lei que defina a educação como “Direito de todos e obrigação do Estado”. Será que a solução para construir um mundo melhor não seria aumentar em lugar de diminuir o número de pessoas ignorantes e iletradas? O objetivo desse artigo é convidar você a pensar nisso.

Da ciência

É fato que os incríveis avanços tecnológicos deram – e ainda dão – muita esperança de um mundo melhor. Mas é fato também que – por conta da índole egoísta e da oniprepotência nata do animal humano – as tecnologias sempre criam ou potencializam mortes, sofrimentos e dores.

A ciência criou as armas de destruição em massa que cada vez mais vêm transformando o assassinato de pessoas em meros números toleráveis e estatísticas frias. As maravilhas da medicina – ao mesmo tempo em que salvam vidas – criam meios de segregação porque são acessíveis apenas a quem tem dinheiro para usá-las. Os fantásticos avanços industriais tornam as pessoas “descartáveis” e perfeitamente substituíveis por máquinas cada vez mais eficientes e necessárias. Em paralelo, esses avanços geram todo tipo de refugo, lixo, poluição. Substâncias nocivas são continuamente lançadas na água, no ar e no solo e se tornam responsáveis pelo surgimento e pelo aumento de doenças de todos os tipos; que os avanços da medicina combatem sempre selecionando, pelo dinheiro, os que podem e os que não podem ser curados. Esse círculo vicioso tem gerado enormes custos financeiros e é uma ameaça, cada vez mais séria e efetiva, de extermínio da própria vida no planeta.

Os absurdamente fabulosos avanços dos meios de comunicação conseguiram “diminuir o tamanho do mundo” permitindo conversas e trazendo notícias em tempo real. Conseguiram apresentar programas, jogos e filmes com imagens em alta definição e som cristalino e fantasticamente potente. Acontece que todas essas maravilhas – por estarem nas mãos da ganância do animal humano citado e definido acima, e por serem consumidas pelo mesmo animal humano – acabam servindo como instrumentos de alienação das mentes, exploração dos corpos e disseminação de ideologias assassinas.

Todos esses avanços fabulosos dos meios de comunicação pouco ou nada contribuem para alcançar resultados que efetivamente ajudariam a tornar o ser humano melhor. A mídia pouco ou nada contribui para melhorar e democratizar a educação; pouco ou nada faz para divulgar conhecimentos científicos; pouco ou nada contribui para aumentar o respeito pelo outro que ficou mais próximo; pouco ou nada contribui para potencializar a consciência ética e moral das pessoas; pouco ou nada contribui para diminuir os preconceitos e a segregação. Nem mesmo para promover o aumento da qualidade de vida das pessoas esses avanços dos meios de comunicação têm contribuído como deveriam.

Em muitos casos, infelizmente, a mídia vem contribuindo mais para que se alcance o oposto dos progressos e ganhos humanos e sociais que os pontos citados acima poderiam representar. Vemos o tempo todo, nas grandes redes de televisão e em todas as grandes mídias, programas e matérias variadas que desinformam, que divulgam pseudociência como se fosse ciência, que “ensinam” a falta de ética, que promovem a ideia de que “bom mesmo é se dar bem não importa a custa de quem”. Riem e fazem rir com o “engraçado” de ver alguém sendo humilhado por outro alguém mais “famoso”, mais rico, mais sortudo ou mais “bonito”. As mídias, infelizmente e quando poderiam fazer o contrário, comumente divulgam ou criam programas e matérias que contribuem para aumentar (e até para criar) preconceitos e mostrar “razões” para que pessoas discriminem pessoas.

Da educação

Quanto à educação, todos os envolvidos no processo sabem que a maioria dos alunos – independentemente da escola e do nível social e financeiro de seus pais – estão a maior parte do tempo tremendamente ocupados em soltar palavras de baixo calão aos gritos, mexer no celular procurando novas maneiras de conversar sem conteúdo, disputar acirradamente para NÃO saber quem consegue acessar os sites mais vazios e inúteis, ouvir o máximo de vezes possível os barulhos monótonos e insuportáveis que insistem em chamar de música e, principalmente, deixar claro que o professor na sala de aula é apenas um “poste” incômodo a ser ignorado.

É claro que os alunos das escolas públicas das periferias são os mais prejudicados por esse comportamento. Eles não têm os recursos, proporcionados pelo dinheiro, dos quais os pais lançam mão para garantir a “boa educação” de seus filhos. As aulas particulares nos dias que antecedem a qualquer prova importante, os trabalhos pagos para serem feitos por terceiros com o nome dos seus lindos filhinhos no campo “autor”. E há sempre outras facilidades que variam de acordo com a estrutura da família, o número de zeros na conta bancária e a influência que seu dinheiro tem sobre a direção da escola. Esses meios são completamente desconhecidos por grande parte dos alunos de escola pública. O maior recurso de que eles ainda lançam mão para “se dar bem” é a velha e manjadíssima cola.

Mas temos que ser honestos e reconhecer que nem tudo é maldade e falta de ética. Há também o acompanhamento efetivo que muitos pais dão aos seus filhos; mesmo pais de alunos de escola pública, em muitos casos, se preocupam e acompanham da melhor forma que podem os estudos de seus filhos. Acontece que o acompanhamento dos estudos é muito mais eficiente quando feito por pessoas cultas e com disponibilidade maior de recursos, como computadores e livros em casa. Esse tipo de acompanhamento, digamos “especializado”, em geral está longe das condições dos alunos mais pobres porque os pais desses alunos são, em geral, pouco letrados e pouco podem fazer além de ir às reuniões e cobrar seus filhos com mais energia.

Os alunos de escola pública, quando têm o computador em casa têm pais que não sabem usá-lo e não sabem orientar e exigir dos filhos o uso pedagógico adequado dessa ferramenta. Então, o que acontece é que esses alunos não usam o computador para muita coisa além de continuar, nas redes sociais, as mesmas atividades vazias e “desinformantes” a que se dedicam na sala de aula enquanto o professor tenta ensinar alguma coisa.

Lógico que é muito bom e recomendável que os pais dos alunos da escola pública acompanhem, cobrem e se interessem pelos estudos de seus filhos! Esse acompanhamento – por diversas razões e nem sempre por culpa dos pais – chega a ser raro em muitas escolas, mas quando acontece sem dúvida nenhuma surte grandes efeitos. Porém, o fato inegável é que, por mais louvável e benéfica que seja a presença efetiva dos pais na vida escolar dos alunos de escola pública, essa presença é muito menos eficiente do que a mesma ajuda vinda dos pais mais cultos. Então – com ou sem o acompanhamento efetivo dos pais – o aluno de escola pública, em geral e quase sempre, está sim em desvantagem com relação ao aluno da escola particular. Mesmo quando ambos têm o mesmo desinteresse e o mesmo desprezo pelos estudos, pela escola e pelos professores.

Da realidade

Comecemos com essa relação de fatos:
Os criadores das incríveis máquinas capazes de substituir dezenas de trabalhadores que ficarão sem seus empregos; os criadores das fantásticas máquinas capazes de produzir maravilhas e montanhas de lixo tóxico são, em geral, formados em engenharia. Os que descobrem como extrair e manipular substâncias para conseguir remédios, combustíveis, adubos, cosméticos e todo tipo de produtos que prolongam e facilitam a vida de uns enquanto descartam, obsoletam e excluem muitos outros são, em geral, formados em química. Aqueles que criam e aperfeiçoam as máquinas e dispositivos cada vez mais avançados que possibilitam o envio e recebimento de som e de imagem com cada vez mais rapidez, precisão e realismo são, em geral, formados em tecnologia, informática e faculdades afins. E as pessoas que administram as indústrias de grande porte onde estão essas máquinas e esses laboratórios; pessoas que em nome de maiores vendas e maiores lucros têm como “política de sobrevivência” a prática de todo tipo de troca de favores, exploração de pessoas e manipulação de informações são, em geral, formadas em Administração, economia e faculdades afins.

No Brasil – e nas grandes potências mundiais que negociam em dólar – os que se elegem com mentiras e com mentiras se mantém nos altos cargos administrativos do país são, em geral, formados em faculdades de primeira linha. Exceto para o judiciário, onde todos precisam ser formados em direito, se não me engano, a exigência de formação universitária na política vem principalmente dos eleitores da elite e da mídia, que, com raras exceções, convence os demais eleitores de que não devem votar em quem não tem “canudo”. A menos, é claro, que o candidato tenha muito dinheiro ou muita exposição e apoio da mídia. Como eu disse: as exceções são raras.

E há ainda as empresas estatais, sempre administradas pelos “senhores doutores” que têm em comum a constante preocupação de aumentar “ao infinito” seu próprio cabedal com falcatruas, arranjos, desvios e roubos que custam a miséria e até a morte de milhares de pessoas.

Existem ainda aqueles que, com discursos “convincentes”, manipulam, exploram e roubam pessoas humildes, inocentes e ingênuas vendendo um deus que promete – para “talvez” ou para a outra vida – milagres e felicidades que acontecerão apenas para quem tiver fé e fizer “doação para o Senhor”; esse ser todo poderoso que cada dia “precisa” de mais dinheiro. Em termos de exigência de formação universitária, esses “homens de Deus” são quase uma exceção no caso das igrejas evangélicas, mas não o são na igreja católica. Mas nas igrejas evangélicas, os maiores e mais influentes, aqueles que mais exploram e mais danos causam, os que propagam fundamentalismo preconceituoso e violento, os que interferem de forma desonesta na criação das leis do país, os que levam “a palavra” às aldeias indígenas e colaboram para a perda irreversível de sua cultura, esses são, em geral, pessoas formadas em universidades. Pelo menos esse é o caso de um dos maiores nomes dessa vertente; formado em psicologia. E ele não é o único.

Da ideia

Vimos que para todas essas atividades, funções, profissões e ... danos, salvo raras exceções, as pessoas precisam ser cultas, ter frequentado universidades, ter um ou mais diplomas. E foi pensando nisso que vim a me perguntar se não estamos todos, professores, pais e sociedade – pelo menos a parte dos pais e da sociedade que se preocupa com isso – lutando pelo lado errado. Será que a luta pela educação pública e gratuita para todos não deveria se tornar a luta pelo fim da educação formal – pública ou privada – para todos?

          Mas então você está defendendo a volta à Idade da Pedra?

          Sim e não. Primeiro porque não estou dando uma resposta, nem sequer estou fazendo uma proposta ou apresentando um projeto. Estou apenas, até o momento, fazendo perguntas, tentando provocar pensamentos e discussões e, talvez, abrir espaço para que se olhe a questão da educação por um outro ângulo. E, principalmente, na minha pouca visão dos fatos, estou pensando se não seria válido aplicar para a sociedade o mesmo princípio que Einstein usou para as mentes: “Uma vez aberta não volta ao seu tamanho original”. Talvez sem a obrigatoriedade da educação formal – que aliás nunca quiseram – a maioria dos jovens possa se dedicar a atividades menos danosas, como aprender profissões artesanais de seu interesse e se dedicarem a atividades práticas que lhes permita sobreviver e criar suas famílias.

Poderão viver sem ter que conhecer ou se preocupar com o avanço das tecnologias que permitem explorar o outro. Não terão a ambição de se tornar milionário à custa da destruição da vida no planeta, então, talvez, o planeta possa ter tempo para recuperar sua natureza e seu ecossistema sem os ataques maciços que têm sofrido até agora.

          Eu não proporia – e não acho que deva ser feita – a extinção da educação; menos ainda a queima de livros aos moldes das sanguinárias ditaduras políticas e religiosas que o fizeram tantas vezes na história. Minha ideia é mais a de que a educação formal seja algo a ser dado a todo aquele que a deseje. Sem distinção de cor, raça, sexo ou qualquer outro tipo de nomenclatura ou adjetivo que separe pessoas em grupos distintos. Bastaria apenas que alguma pessoa – criança ou adulto – mostrasse o desejo de aprender para que esse conhecimento, em existindo, lhe fosse dado. Para isso se poderia manter, em todos os lugares do mundo, um número suficiente de escolas nas quais se matriculariam aqueles que lá desejassem estudar. Ninguém poderia ser forçado, seja pelo estado seja pelos pais ou responsáveis, a atravessar os portões de uma escola e sentar-se diante de um professor. Apenas o desejo, apenas a curiosidade, apenas a sede de conhecimento, apenas o amor pelas ciências faria com que alguém se tornasse um aluno... e um professor.

          Mal consigo vislumbrar a quantidade de mudanças que essa nova postura diante da educação poderia trazer. Pensei em quanto menos pessoas se formariam em cursos para os quais não tiveram vocação ou vontade, quantas menos se tornariam profissionais sofríveis, quantas menos seriam protagonistas de erros capazes de causar grandes danos e até a morte de pessoas a seus cuidados. Pensei que o número de profissionais capacitados em muitas áreas importantes seria drasticamente reduzido e, em alguns casos – como na medicina, por exemplo – isso poderia resultar na falta desses profissionais para atender as necessidades da população em muitas cidades do mundo. Mas, venhamos e convenhamos, isso já não acontece?

Conclusão

Enfim, tudo o que escrevi aqui é pouco mais do que um esboço de pensamento, ainda estou na fase de passar horas rolando na cama, tentando imaginar quais seriam as consequências dessa minha ideia se aplicada, nessa ou naquela área. Em alguns casos chego à conclusão de que poderia haver mortes e sofrimentos, então tento pesar essas mortes e sofrimentos possíveis com as mortes e os sofrimentos que existem agora em consequência das falhas e dos derivados do sistema atual. Então tento pesar essas mortes e sofrimentos possíveis com as mortes e os sofrimentos que acontecerão em consequência das falhas e dos derivados do sistema atual. Novamente não sei a resposta e não sei se existe uma, mas penso nos tantos e tantos avisos, indícios e provas de que estamos levando nossa raça à extinção – e muitas outras além da nossa, talvez todas – e me pergunto se o abandono dessa ideia de dar educação a todos (queiram eles ou não) e, em lugar disso, a adoção do novo sistema de educação voluntária não poderia ser uma forma eficaz de “salvar o planeta”, como dizem muitos dos que não sabem que não é o planeta que precisa ser salvo e sim a vida que ele abriga.

Esse artigo foi escrito só para fazer essa pergunta. Quer tentar respondê-la?