Viver é um pé no saco. E olha que eu nem tenho
saco... Não tenho mais saco para brincar de dizer que a vida é legal, não
acredito mais nessa mentira há tempos, a vida é um porre, é ruim, é inútil, é
desagradável. Viver não tem nenhuma razão, nenhum sentido, nenhuma graça.
Jovem gosta da vida porque só vive, não pensa. Mas
a gente vai vivendo e começa a pensar. Por que será que é tão importante para
raça humana ficar se dizendo o tempo todo que a vida é legal? Se fosse mesmo
seria preciso ficar dizendo tanto? Por que a maioria das religiões condena o
suicídio, não seria para que não haja suicídios em massa? Por que a gente tem
tanto medo da morte se a vida é muito mais apavorante? Deve ser por que sem
esse medo atávico a gente se recusaria a viver. Quem iria querer ficar nesse
mundo tão ruim se não estivesse preso por um instinto que nada tem de racional?
Na vida tem prazer. Tá bom, tem prazer sim, mas
quais são eles? Sexo? Para a maioria de nós é pecado, é tabu, é nojento, é
comércio, é forçado de uma forma ou de outra. Ou é forçado porque a mulher
transa só com o marido para ser honesta, ou é forçado porque o marido transa só
com a mulher para ser responsável, ou é forçado porque a amante transa o homem
casado por dinheiro, ou porque a menina ou o menino transam porque seus
hormônios não são domináveis, ou é forçado porque já que todo mundo transa...
ou é forçado mesmo. Estupro legalizado ou não. Sexo sem nenhum tipo de amarra
praticamente não existe, ou realmente não existe, exceto, talvez, entre os
animais. E se não tiver amarras tem consequências, é a gravidez indesejada, a
traição ou o medo dela, a doença venérea mais ou menos grave, a acusação de
pecadora, galinha, puta, vagabunda, “viado”, sapatão... Ou a cobrança que
obriga a mentir, o garanhão que brocha, o sátiro que gostaria de encontrar sua
alma gêmea, o cara que tem o pinto pequeno e é obrigado a tentar acreditar que
tamanho não é importante, ou aquele que, coitado, nem sabe se tem pau pequeno
ou não. Sexo, para a imensa maioria, acaba sendo na verdade algo ruim que se
finge que é bom, algo bom que deixa culpa e sofrimento, algo morno de que não
se fala nada ou se fala mentiras. E a vergonha do corpo? Quantos gordos e
gordas? Quantos velhos e velhas? Quantos feios e feias? Quanta gente tão longe
da “perfeição” se cobrando e se travando pela vergonha!
Que outro prazer tem? Comer. Mas comida nem todo
mundo tem, e quem tem nem sempre tem o suficiente para o prazer, e quem tem
para o prazer não pode porque engorda e gordura é feio. Tudo bem, é doença
também mas quem liga? O ruim mesmo é que é feio. Comer por prazer dá vergonha,
quase tanto quanto o sexo, dá culpa quase tanto quanto o sexo. Comer por prazer
também é pecado, como o sexo. Comer é tão ruim quanto fazer sexo.
Beber? Mas beber vicia, dá ressaca, vira do avesso,
destrói lares, mata de cirrose. Beber é pecado, é vício, em muitas culturas é
proibido. Quanto às drogas ilícitas nem precisa falar porque basta falar das
lícitas para lembrar que com as outras tem ainda mais dificuldades, problemas e
consequências.
Criar filhos? Criar filhos não é prazer, é
obrigação do instinto, é o instinto irracional da entrega, de cuidar e amar
aquele que, se não fosse o instinto que impede até pensar nisso, seria a pessoa
que primeiro desejaríamos matar. Sim, é cuidar de quem ficará no seu lugar
quando você morrer, e por instinto você não quer morrer, mas prepara seu
substituto como boi baixando a cabeça para o abate.
Amar as pessoas é um prazer? Talvez por um tempo,
mas logo acaba. A pessoa não quer mais, você não quer mais, a pessoa morre,
você morre, a pessoa te trai, você trai, a pessoa adoece, fica inútil e você
tem que cuidar, você adoece, fica inútil e a pessoa tem que cuidar. Amar dói.
Viver é esperar a grande desgraça. E não se pode
nem pensar em escapar. Ela virá, para você ou para alguém que você ama muito. Ela
virá, com toda certeza, virá! Você só não sabe quando. Será a morte, uma
doença, a velhice incapacitante, um acidente que mutila. Às vezes mais de uma
dessas coisas vêm, juntas ou numa sequência com intervalos variáveis. Vem uma
desgraça, duas ou várias, mas vem, sem dúvida nenhuma vem. É só uma questão de
tempo.
As pessoas são boas? Mentira, somos todos
terrivelmente ruins, não mato porque sou covarde, você não mata porque está
alienado pela religião e, nesse momento, ela diz para não matar. Mas houve
tempo em que a religião mandou matar e talvez volte a fazê-lo, então você
também vai matar, torturar, roubar, humilhar, caluniar, e dizer que é a vontade
de Deus. A religião leva a isso, é só uma questão de tempo. Tempo no passado ou
tempo no futuro, talvez os dois.
Tem deus para te consolar? Só se você fechar bem
seus olhos, seus ouvidos e sua mente. Só se você não pensar nem por um momento
na dor que te cerca, que está sempre e a todo momento em você ou a teu redor.
Deus como consolo? De que maneira se a religião afirma que ele mandou você não
pensar? se a religião quer que você veja como pecado tudo aquilo que é
contrário àquelas leis que, em algum momento, um homem cheio de fanatismo,
paranoia e esquizofrenia, às vezes junto com outro sádico, humilhado e cheio de
ódio doentio escreveu e disse que foi o próprio deus que o fez. E você acredita
porque esse bando de loucos escreveu também que se você não acreditar será
porque tem uma aliança com o diabo ou está sob a possessão dele – essa entidade
que parece inspirada nas paranoias desses profetas lunáticos – e você será um
descrente, um herege, um ímpio, um pagão, um qualquer-coisa que merece em
tempos de paz o asco, o medo, a repulsa, o isolamento e até uma piedade
rancorosa, e em tempos de guerra a tortura, a morte. Se você pensar será o isolado
porque tudo que você pensar merecerá um “vade retro” e você corre o risco de se
tornar o próprio diabo sem nem sequer acreditar nele.
Ah, tem o conhecimento. O saber é um prazer. Mas
como se quanto mais sabemos mais sabemos o quanto somos ignorantes? E se
sabemos, mais ainda, que nem sequer temos condições de avaliar a extensão da
nossa ignorância? Somos amebas olhando para o sol, que pode entender de sol uma
ameba? Que podemos entender de alguma coisa nós, pobres macacos pelados?
A natureza é linda, tem no mundo paisagens de tirar
o fôlego do ser humano mais insensível, são recantos verdes, são ilhas em meio
a mares azuis, são flores, perfumadas ou não, com suas cores e brilhos, são
animais cuja aparência ou habilidade nos deslumbra, são filhotes cuja beleza e
fragilidade quase que faz com que acreditemos no bem. Mas onde não vemos está o
lindo inseto lançando veneno para capturar outro inseto não tão lindo assim,
está o belo pássaro cantor se esbaldando de assassinar insetos, está o réptil
capturando os filhotes mal saídos dos ovos de pássaros coloridos, está um peixe
abrindo a boca e engolindo vários outros menores, às vezes da própria espécie,
está um homem preparando uma armadilha para capturar um roedor a fim de vender
sua pele, estão todos os seres vivos em uma guerra infinita de assassinatos em
massa a que os biólogos chamam de cadeia alimentar. Um deus tem que ter
requintes de sadismo para criar tal natureza, e nós temos que ser muito burros
para ver beleza nisso. E somos.
E não, eu não estou falando da minha vida. Estou
falando da Vida, ela mesmo, assim, com letra maiúscula. Alguém vai querer me
convencer de que a vida é bonita? Comparada com o quê?
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