6 de dezembro de 2019

LEMBRANÇAS DE INFÂNCIA


Não sei como eu era, mas sei como parecia a mim mesma. Minha mais antiga lembrança. Eu era só pernas e cabeça. Muito alta, muito altas as pernas porque chegavam até o pescoço, então havia a cabeça com os cabelos enormes e que não ficavam como eu queria que ficassem. Eu nem mesmo sabia como queria que ficassem. O rosto com olhos enormes que sabiam ver mas não sabiam entender nada do que viam e a boca que sempre se arrependia do que dizia e que nunca conseguia ficar fechada. Tinha também a testa, quase tão grande como as pernas e que se enchia de espinhas o tempo todo e de suor todo o dia. E havia os joelhos. Eram dois e estavam sempre machucados; um sangrava, outro tinha ferida com casca que era bom de tirar, aí o que estava com casca ralava de novo e sangrava e o que estava sangrando criava casca que era bom de tirar. Mas tirar casca de ferida fazia sangrar e se a mãe visse fazia levar bronca. Às vezes os dois joelhos estavam iguais, ou sangrando ou com casca. Você vai ter pernas feias, os joelhos cheios de cicatriz, não vai arrumar namorado desse jeito. Era a mãe falando. Então eu pensava no namorado que não teria por causa dos joelhos feios e cheios de cicatrizes. Ele era marrom e bonito e gostava de outra menina que além de pernas tinha também um corpo, uma cara bonita e enormes cabelos que ficavam do jeito que ela queria que ficassem. Ela sabia como queria que eles ficassem. Tinha a professora que era preta, era gorda e era linda de tão simpática mas que passava o tempo todo escrevendo na lousa e escrevia tão depressa que não dava tempo de copiar, principalmente de copiar enquanto olhava para o menino que era o namorado que não ia me querer nunca porque eu era só pernas e cabeça. Mas um dia eu tive um vestido de papel e fui uma boneca frágil e linda porque era vermelha e amarela e nenhum vestido foi mais bonito do que o meu, e era meu aniversário e a professora que era preta, gorda e linda deixou que eu servisse os docinhos porque era meu aniversário e eu fiquei feliz mas acabou porque teve o dia que eu entrei na sala da menina que sabia como queria que o cabelo dela ficasse para ser bonito e o meu namorado que não me queria tinha deixado um recado de amor para ela e eu chorei. E na hora de brincar de roda eu e minhas pernas sempre escolhíamos o meu namorado que não me queria para brincar e ele escolhia a menina de cabelos bonitos e eu ficava triste mas eu tinha uma amiga que me dava biscuit e copiava a lição pra mim porque ela sabia escrever muito rápido e era muito, muito boa mesmo e ela morava perto da escola e a casa dela só tinha uma mesa e pacotes de biscuit porque eu fui lá algumas vezes e não me lembro de nada além de uma mesa e pacotes de biscuit. Um dia eu fui comprar paçoquinha e umas crianças acharam que eu não era só pernas e cabeça e viram que eu usava calcinha e fizeram que eu brincasse de mamãe e disseram que a mamãe tira a calcinha na hora que vai dormir, eu que tinha olhos enormes que viam e não entendiam nada, não entendi o que era a brincadeira e nem sabia porque uma mãe iria tirar a calcinha para dormir mas não entendia e eles sabiam brincar de um brinquedo novo que era fingir que dormia só que antes tinha que tirar a calcinha e então eu que não entendia nada tirei a calcinha e eles esconderam a calcinha e não queriam me devolver e eu comecei a chorar mas eu não tinha vergonha porque era muito burra de sexo e nem sabia que eles não eram burros de sexo que nem eu e eles me deixaram chorando um monte de tampo entes de devolver minha calcinha porque tinham escondido debaixo de uma frigideira mas eu fui pra casa e fiquei parada perto da minha mãe e queria contar uma coisa para ela mas era uma coisa que eu não sabia o que era e nem tinha certeza se era uma coisa das que se conta para a mãe da gente e eu esperei com cara de quem fez alguma arte e a minha mãe parou de lavar a roupa um pouquinho e me perguntou porque eu estava olhando pra ela com aquela cara lambida e o que eu tinha feito de arte para estar com aquela cara de culpada, então eu pensei que não podia perguntar para ela porque as mães tiram a calcinha para dormir e se as mães tiram a calcinha para dormir e se era muito errado brincar de fingir que dorme como a mãe que tira a calcinha para dormir e deixar que as outras crianças escondam a calcinha da gente debaixo de uma frigideira e pensei que se eu perguntasse ela talvez fizesse como no dia que eu chamei ela de filha da puta e ela me bateu muito muito até eu ficar chorando e pensando muito para tentar descobrir o que era uma filha da puta que ela falava para mim mas eu não podia falar para ela. Agora eu sei que ela falava porque não queria me xingar mas eu falando estava xingando ela. Eu não entendia nada com os meus olhos enormes que só viam sem saber e as minhas pernas enormes que só tinham joelhos machucados que seriam muito feios e que o meu namorado nunca ia me querer. Mas acabou o tempo gostoso das férias e na volta da escola tudo ficou ruim porque os meninos gritavam cadê a minha calcinha e riam muito e o outro respondia está debaixo da frigideira e riam muito e só me viam andando na rua que riam muito e gritavam cadê a minha calcinha e outro respondia está debaixo da frigideira e eles riam muito e as meninas riam muito também e eu não sabia o que fazer porque não sabia que era tão bom humilhar as pessoas assim e eu fiquei com medo do meu pai me bater muito muito porque tudo que falava de menino e de mim junto meu pai ficava bravo porque ele achava que menino e menina não podiam nem brincar de nada muito menos de esconder a calcinha debaixo da frigideira e eu fiz de conta que não sabia nada, nada nem o pouquinho que eu sabia e perguntei para as meninas que não riam e que olhavam para mim com cara de muita pena e de muita tristeza por causa da pobre coitada que eu era e elas me contaram que os meninos falaram que fizeram besteira comigo e eu não sabia o que era fazer besteira mas achei que era a mesma coisa que brincar de fingir que dormia que nem a mãe que antes de dormir tirava a calcinha e eu disse que não fiz nada e elas não acreditaram muito mas eu disse que não fiz nada e fiquei a vida inteira dizendo que não fiz nada e disse que não fiz nada para todo mundo e quando minha mãe me perguntou eu disse que não fiz nada e quando meu pai me perguntou eu disse que não fiz nada e quando todo mundo me perguntou eu disse que não fiz nada e eu fiquei sendo a maior mentirosa do mundo porque eu aprendi a dizer tão bem uma mentira que nem era mentira direito que ninguém podia deixar de acreditar em mim e meu pai e minha mãe acreditaram mas os meninos ficaram perguntando onde é que tá minha calcinha o tempo todo porque não adiantava eu dizer que não fiz nada e eles diziam que eu ia ficar grávida e que eu ia tirar o neném e eu não sabia de onde é que eu ia tirar um neném mas eles riam muito de mim e eu nem queria ir para a escola mas meu pai não deixava eu não ir e um dia a professora brigou com todo mundo porque ficavam rindo de mim e eu gostei tanto tanto da professora que sempre sempre ia lembrar muito dela mas agora eu esqueci. Só lembro que o nome dela era Dona Lurdes. E teve o dia que um monte de meninos estava perguntando cadê a minha calcinha e dando muita risada de mim no caminho da escola e eu já devia estar acostumada com isso mas eu não estava e o meu namorado que não gostava de mim estava junto e ele também ria de mim e eu senti tanta dor mas tanta dor que peguei uma pedra e joguei para acertar em qualquer menino que estava perguntando cadê a minha calcinha e dando risada de mim e fazendo meu namorado que não gostava de mim rir também e eu joguei a pedra e ela acertou nas costas de um menino que era loiro e inteligente e que disse depois que não estava rindo de mim mas que eu não sei não mas acho que ele estava rindo sim e ele foi para o hospital e levou ponto no machucado dele e a mãe dele foi na minha casa falar para a minha mãe que eu precisava apanhar porque eu tinha jogado uma pedra no filho dela e ele teve até que ir para o hospital e levar ponto porque o machucado foi muito grande e ela estava muito brava comigo e parece que ela queria ela mesma bater em mim e eu disse para ela que joguei a pedra porque eles estavam rindo de mim e perguntando cadê a minha calcinha e eles riam muito e eu fiquei com raiva e joguei a pedra e que podia acertar em qualquer um que estava rindo de mim e que acertou no filho dela ela então ficou com raiva mas foi com raiva do filho dela e deu uns tapas nele e xingou ele que bem feito de ele ter levado a pedrada e pediu desculpas para a minha mãe e foi embora e eu fiquei gostando muito dela porque o filho dela nunca mais riu de mim quando os outros perguntavam cadê a minha calcinha e riam.


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