Eu tenho 60 anos.
Quando
era criança, por tudo que ouvia dos adultos, fiquei sabendo que “mulher
solteira que não é mais virgem não presta” e que “moça que se casa de branco
sem ser virgem está cometendo um pecado mortal”. Antes de saber o que
significava, aprendi que a palavra designava algo que as mulheres tenham
obrigação de ser sempre e que as que não fossem iriam para o inferno. Mais
tarde fiquei sabendo que existia uma coisa chamada sexo, algo que me pareceu
nojento e que era feito entre um homem e uma mulher, soube também que sexo só
podia acontecer depois do casamento e que servia para fazer neném.
Teve
uma mulher que foi muito importante na minha vida, ela era viúva, não tinha
filhos, morava sozinha e me contou que no dia do casamento ficou com tanto medo
do marido que correu para o quarto dos pais dela e se escondeu debaixo da cama
chorando. Sexo me parecia algo um tanto assustador, principalmente porque
quando a mulher se casava era obrigada a deixar que o marido fizesse isso com
ela.
Aos
poucos fui aprendendo que não era bem assim. Aprendi que sexo era bom quando a
mulher gostava do homem, que dava prazer e que o maior perigo de fazer isso
antes do casamento era engravidar e ser expulsa de casa.
Depois
aprendi mais e, sendo a brigona questionadora que sou, concluí que virgindade era
um mal tremendo que aterrorizou e destruiu a vida de muitas mulheres ao longo
da história e que os que mais levavam vantagem com toda essa tortura de que as
mulheres eram vítimas desde sempre eram os homens, e principalmente os homens
mais escrotos e nojentos.
Tenho
uma tia que dizia para a mocinha quase criança que eu era: “O importante é guardar
a porta da igrejinha”, a “igrejinha” era minha vagina e a “porta” era meu hímen.
Eu achava essa frase absurda e a comparação humilhante porque ouvia falar de
mulheres que “faziam outras coisas” mas tomavam cuidado para não “perder a
virgindade”. Isso me parecia tão hipócrita que decidi que quando resolvesse
fazer alguma coisa não seria pela metade, que nunca usaria de hipocrisia para
guardar o que quer que fosse.
Ouvi
também muitas histórias de homens que enganavam as mulheres jurando amor só
para conseguir “tirar a virgindade” delas e depois sumiam, a desprezavam e
partiam para outra conquista. Ouvi que nos tempos da minha mãe menina era ainda
pior porque os pais expulsavam essas moças de casa e elas acabavam virando
putas porque não tinham para onde ir. Sabia também de maridos que traiam e
humilhavam as esposas porque elas não se casaram virgens, eles diziam a elas
que só se casaram porque foram obrigados e que elas eram putas. O que me
enfurecia mais é que esses maridos tinham enganado essas mulheres com
declarações de amor eterno e, quando elas caíram na conversa deles e as famílias,
descobrindo tudo, forçaram o casamento, eles se sentiam traídos, e acusavam a
mulher de puta dizendo que “se deu pra mim, daria pra qualquer um”. Muitas eram
espancadas sob essa acusação.
Eram
tantas histórias que eu ouvia, muitas com nome e endereço, que me tornei uma
jovem revoltada contra os machões que humilhavam as mulheres ou que exigiam
virgindade delas. Hoje se diria que me tornei feminista. É como me defino hoje,
mas naquela época não ouvia esse nome e não nomeava o que eu era. Comecei a
dizer coisas como “Quando um neném nasce não dão um tapinha na bunda? Nas
meninas deveriam também enfiar um dedo para livrá-la desse castigo chamado
virgindade” e “Se um homem não me quiser por eu não ser mais virgem, vou erguer
as mãos para o céu e agradecer a deus por me livrar de um ser asqueroso como esse”.
Quando eu dizia isso para minha mãe, ela ficava tão escandalizada que corria
para o quarto chorando.
Desde
bem mocinha, quando começaram a perguntar, passei a ter muita vergonha de dizer
que era virgem. Sentia também um pouco de raiva de ouvir essa pergunta, afinal,
ninguém nunca perguntava isso para os meninos. Muitas das minhas amigas e
colegas, ao ouvirem a clássica pergunta sobre isso, ou às vezes mesmo sem que
alguém perguntasse, diziam com ares orgulhosos levantando a cabeça e estufando
o peito: “Eu sou virgem!”. Eu sentia vergonha por elas e quando alguém me fazia
essa pergunta minha resposta era sempre “Não, eu sou câncer!”. Por conta dessa
minha vergonha de dizer que era virgem passei por pelo menos dois perrengues,
um deles bastante assustador.
O
mais suave foi o irmão de um amigo. Esse meu amigo era a parte masculina de um
casal e eles alugaram uma casa e foram morar juntos, eu fui ajudar na mudança
junto com o irmão dele. Depois de arrumarmos tudo o irmão me propôs que a gente
fosse até um posto abastecer o carro aproveitando para deixar o casal sozinho
por um tempo. Achei uma ótima ideia e fomos, no posto o cara disse que saindo
dali a gente podia ir a um drive-in, eu disse não e a resposta dele foi “Mas
você não disse que não é mais virgem?”. Quase disse que era mentira minha, mas
a vergonha de assumir ser virgem e a raiva de ele querer transar comigo só
porque eu não era mais virgem me impediu e respondi que o fato de não ser
virgem não me obrigava a sair com qualquer um e que eu não queria fazer sexo
com ele. Fiquei com medo porque a cara de raiva que ele fez foi realmente
assustadora. Ele me levou de volta para a casa dos meus amigos, se despediu
deles e foi embora. Depois disso a gente esteve ao mesmo tempo no mesmo lugar
mais de uma vez e ele nunca mais falou comigo. Nunca contei isso para o casal.
Mas
o mais apavorante foi quando um amigo muito querido da época, que era amigo
também de uma ex-paixão minha e que até tinha sido confidente dessa paixão
comprou um carro e me convidou para dar uma primeira volta. Sabe quando você
gosta de alguém e confia na pessoa? Pois é! Era assim e nem pensei duas vezes,
feliz por ele entrei no carro e saímos conversando. Era noite e a coisa ficou
tensa quando ele parou o carro em um lugar tão escuro que eu enxergava com os
olhos abertos ou fechados do mesmo jeito (fiz o teste). Ele desligou o motor e
disse que como eu não era virgem, bem que podia transar com ele, afinal o meu
ex-amor já estava casado e eu mesma disse que a paixão tinha acabado. Não sei
nem explicar o quanto senti medo, me vi estuprada e jogada em um matagal, a
amizade se mostrou falsa e aquela pessoa não era o amigo de quem eu gostava
tanto. O medo venceu a vergonha e, como para salvar minha vida, confessei a ele
que era virgem e expliquei ou tentei explicar a vergonha que tinha de dizer
isso. Ele então debruçou sobre o volante e ficou quieto um bom tempo (eu ainda não
enxergava quase nada, só sentia os movimentos e vislumbrava a sombra dele). Continuei
apavorada, paralisada e sem saber o que fazer. Não sei quanto tempo durou
aquele silêncio aterrador, mas ele levantou a cabeça, se virou para o meu lado
e perguntou: “Divina, você quer se casar comigo?”
Senti
um alívio indescritível, me pareceu que algo dentro de mim gritou que eu não ia
morrer. Então disse a ele que não podia porque gostava muito dele, mas não o
amava. Daí ele ligou o carro e voltamos para nosso bairro, nossa vizinhança,
minha casa. Algum tempo depois ele se casou com uma conhecida minha e a gente
continuou amigo, mas nunca mais ficamos sozinhos ou falamos sobre o que
aconteceu naquele dia.
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