4 de dezembro de 2019

MINIDICIONÁRIO DE RELACIONAMENTOS HUMANOS


Alegria: É algo que a gente sente porque esquece por momentos dos motivos que temos para não senti-la. E os motivos são muitos: pessoas morrem de fome; pessoas morrem de sede; pessoas morrem de frio. Crianças são usadas como escravas, inclusive sexuais, por adultos sem escrúpulos; existem adultos sem escrúpulos e eles são muitos...

Bondade: Tem dois irmãos dos quais é muito próxima e com os quais, se olharmos bem, ela se parece muito. Os irmãos são a Vaidade e o Orgulho. A Bondade é tão ligada a esses dois irmãos que, se os tirarmos de perto, ela provavelmente deixará de existir.

Caridade: É quase um sinônimo de Bondade na medida em que existem os sinônimos. A diferença é que a Caridade é mais prática, mais concreta. Consiste em dar aos outros aquilo de que não precisamos e que, na maioria dos casos, se não encontrarmos quem queira, jogaremos fora.

Destino: É o que usamos para nos eximir de praticar alguma ação efetiva que pode nos tirar de nosso conforto. “Se milhões morrem de fome enquanto eu preciso fazer regime não é culpa minha, é apenas porque “quis o destino” que eu nascesse em uma situação melhor do que esses milhões de pessoas”

Essencial: É tudo aquilo que eu preciso ter para ser feliz. Mas se milhões de pessoas não podem ter o que é essencial para mim, tudo bem, a lista de prioridade das pessoas é diferente e isso não vai atrapalhar ou embaçar a minha felicidade. Afinal, se para mim é essencial ter o carro do ano e se, em situações financeiras mais críticas, eu posso sobreviver sem o carro do ano uma ou duas semanas por que outras pessoas não podem também abrir mão por algum tempo do que é essencial para elas? Acontece que nem todo mundo tem como prioridade possuir o carro do ano, tem gente que precisa apenas comer...

Falar: É um verbo que não está obrigatoriamente ligado ao verbo ouvir. Muitas pessoas falam e falam o tempo todo sobre seus problemas, seus achaques, suas mazelas, suas revoltas, suas crenças mas não ouvem uma única palavra do seu interlocutor, principalmente se este tiver crenças diferentes ou se tiver a audácia de tentar falar também de seus problemas, seus achaques e suas mazelas. Credo! É preciso que a gente se afaste de pessoas que gostam de conversar sobre coisas negativas!

Galinha: É a mulher que se comporta com a mesma liberdade sexual que é normal para os homens, isso, é claro, se essa mulher não for minha filha, minha irmã, minha mãe ou qualquer outra mulher do meu círculo familiar. Galinha pode ser também a mulher que o homem que eu queria conquistar escolheu para namorar ou casar, nesse caso o comportamento sexual dela não importa.

Honra: É uma coisa muito importante e que a gente deve ter caso não tenha dinheiro nem posição social ou política de destaque. No caso de termos dinheiro a necessidade de honra será inversamente proporcional ao número de zeros em nossa conta bancária. No caso de termos posição social a necessidade de honra também será inversamente proporcional a essa posição, só muda um pouco no caso da posição política, aí o importante não é ter honra, é parecer que tem ou, melhor ainda, é que ninguém fique sabendo que você não a tem.

Irmão: É alguém que foi criado comigo e que, teoricamente, tem os mesmos direitos que eu, mas só teoricamente porque na prática eu sempre tenho direito a mais um pouco. Irmão é também o outro: o outro ser humano, a outra pessoa, o outro membro do grupo, ou seja, aquele a quem eu digo amar como a mim mesmo mas que comumente, no trabalho e na vida, faço de escada para minha ascensão social.

Jamais: É o tempo em que, sem dizer para ninguém nem sequer para nós mesmos, sabemos que acontecerão muitas das coisas que formam nossas esperanças e metas para o futuro, seja no aspecto pessoal ou no coletivo. Sabemos, por exemplo, que os homens jamais serão irmãos uns dos outros; sabemos que jamais deixaremos de separar a humanidade em nós os melhores, e eles os inferiores. Essa separação é feita em todos os aspectos da vida: aspectos físicos como espessura do tecido adiposo, cor da pele ou do cabelo; local e condição de nascimento, como ter nascido em um país, cidade ou até hemisfério do globo diferente, ou ser pobre; tendências como orientação sexual ou ser de esquerda ou de direita; crenças religiosas ou políticas; opções por times de futebol ou por esporte predileto e características como ser tímido ou extrovertido. Jamais deixaremos de ser inimigos uns dos outros.

Liberdade: Uma das maiores mentiras que contamos a nós mesmos. Todos queremos ser livres e por saber que a liberdade é totalmente impossível, gostamos de dizer que somos livres sem nos dar tempo de pensar mais profundamente no significado de ser livre. Estamos presos a nossa cultura, a nossa família, a nosso corpo a nosso planeta a nossas reduzidas opções de escolha, a nossas crenças, a nossas convenções sociais. E ironicamente nos dizemos livres!

Morte: É algo que nos assusta tanto que criamos subterfúgios para, pelo menos enquanto estamos vivos, escapar dela. Muitas culturas têm a crença em uma vida após a morte, outras acreditam em reencarnação e tem aquelas que acreditam em retorno dos mortos aos seus corpos originais. Aí eu fico imaginando uma pessoa que viveu há mais de mil anos e que vai retornar e precisa de seu corpo, mas as moléculas que o formavam já estão diluídas em outros corpos, animados e inanimados, como será feita essa “cata”? Suponha que uma parte do que foi a pessoa está agora formando o corpo de uma criança, como se resolverá esse problema? Mas ninguém quer pensar nessas coisas, o importante é fugir da morte, fazer de conta que a vida não é um suspiro entre duas eternidades.

Natureza: Uma coisa que a gente costuma colocar como exemplo máximo de beleza mas que tem morte, tortura, parasitismo, exploração; que a gente costuma colocar como sinônimo de toda perfeição mas que tem má formação, defeitos congênitos, distúrbios de crescimento. A natureza é algo que nós podemos afirmar que nos comove ao extremo com suas belezas mas que, se olharmos mais de perto, pode nos arrepiar e apavorar com seu horrores.

Oportunidade: É aquilo que a gente costuma aproveitar para se aproveitar das pessoas. Chamamos de oportunidade a ocasião, o ensejo que se nos apresenta de fazermos ou usarmos algo de forma a que esse algo nos traga algum tipo de vantagem, o problema é que em geral esse algo e essa vantagem é uma coisa que prejudica alguém, que faz mal a alguém ou que usa alguém como meio, como degrau, como objeto a ser explorado. Não nos importamos na maioria das vezes, porque é tudo para um bem maior: o nosso.

Paz: Uma utopia que às vezes a gente faz de conta que tem. O ser humano como indivíduo não tem paz porque está sempre com medo: medo de deus, medo da morte, medo do outro ser humano. Como grupo não temos paz porque estamos sempre em posição de defesa ou de ataque, geralmente dos dois, contra o grupo vizinho. Para nos defendermos, e atacarmos, precisamos de exércitos, estratégias, segredos e, fundamentalmente, esconder o medo e gritar mais alto, seja esse grito no sentido real ou no sentido figurado. Jamais houve um período de paz no mundo, jamais haverá, mas muitos de nós continuamos afirmando que nossa vida é totalmente dedicada a alcançar a paz, e muitos de nós estamos sendo sinceros.

Querer: É a vontade de ter algo, de que algo aconteça. O querer é que nos faz sentir vivos, queremos sempre alguma coisa, em geral muitas coisas. Sabemos que todas as pessoas do planeta, assim como nós, exatamente como nós, também querem coisas, mas nosso egoísmo não nos permite colocar o querer do outro à frente do nosso. O que importa se tudo que o outro quer nesse momento é ter um teto sobre sua cabeça se eu quero comprar aquela mansão de vinte e cinco quartos? Que importa se tudo que o outro quer é fazer três refeições por dia se eu quero dar um jantar para cento e oitenta pessoas fúteis, vazias e alienadas como eu e servir como sobremesa quindins em forminhas folhadas a ouro?

Razão: É algo de cuja falta ninguém costuma reclamar. Todos nós nos sentimos e nos vemos como seres racionais até mesmo quando fazemos coisas totalmente insensatas ou acreditamos nos maiores disparates. E todos temos razão sempre que expressamos nossa opinião, temos razão quanto a nossas escolhas e preferências, temos razão quanto às nossas crenças. Tenho razão em torcer para esse time porque ele é o melhor; tenho razão em pertencer a essa religião porque ela é a única verdadeira; tenho razão em amar meu país porque ele é o melhor país do mundo; tenho razão. Nunca nos damos conta de que é gente demais tendo razão para que alguém efetivamente a tenha.

Sentido: É algo de que, em geral as pessoas, as coisas e a vida são totalmente desprovidas. As pessoas não fazem sentido porque se julgam boas no mesmo momento em que se aplicam em pisar e repisar outras pessoas, em matar por esporte, em condenar seres alados à prisão perpétua, em achar que o outro merece, deve e será torturado por toda a eternidade, em achar que conhece o outro a ponto de decretar sua derrota, sua inferioridade, sua miséria. As coisas não fazem sentido porque tomam diversos aspectos, definições, utilidades e características ao bel prazer ou à revelia das pessoas e ao mesmo tempo com respeito a diferentes pessoas: as coisas são muito complexas! A vida não faz sentido, nenhum sentido, porque não há objetivo, fim, utilidade que possa ser comprovada indiscutivelmente para nenhuma vida em nenhum momento, vista de nenhuma perspectiva.

Terra: É o planeta azul que a gente gosta de chamar de casa mas que é prisão, que a gente gosta de dizer que está em perigo quando nós é que estamos, que a gente gosta de dizer que pede socorro quando a nossa existência é que clama. Nos achamos tão importantes que chegamos a pensar que a terra é um organismo que sente a nossa presença e precisa de nós, pobres seres oniprepotentes que somos! Quando mais pessimistas, vemos a nós mesmos como algo que incomoda a terra e causa mal a ela. O que não podemos pensar e o que não suportamos acreditar é na muito possível verdade de que a terra é um organismo que ignora, no sentido mais fundo e dolorido da palavra, a nossa existência. Chegamos e partiremos sem que o planeta tome conhecimento de nós para o bem ou para o mal, essa é a possibilidade que não podemos aceitar.

Universo: É a nossa casca de noz, o mundinho que vemos sem vermos nada à frente do nosso próprio nariz. Dizemos, estudamos, sabemos que o universo é imenso, no entanto acreditamos que todo ele foi criado apenas para nós, com o único objetivo de nos conter. Nossa prepotência é tão grande que quase todos nós frequentamos lugares diversos, ouvimos discursos em línguas diversas e lemos livros “sagrados” diversos que nos contam como foi o universo criado em nosso nome e para nos servir de casa. Não nos damos conta de que nossa pretensão, nosso convencimento, nossa megalomania é tão grande que se pudesse ser medida ultrapassaria em muito o tamanho do universo, por maior que ele seja e mesmo que ele seja infinito.

Vida: É algo que a gente diz que todos devemos valorizar mas que nós só valorizamos mesmo a nossa e, no máximo, algumas poucas que estão próximas a nós. Devemos valorizar a vida mas criamos instrumentos cuja única utilidade é tirar a vida; devemos valorizar a vida mas vamos matar o inimigo; devemos valorizar a vida mas vamos brincar de matar o animal; devemos valorizar a vida mas vamos contar as mortes como estatística e afirmar que a chacina não foi tão grande assim; devemos valorizar a vida mas dizemos que a guerra foi necessária, que a bomba foi necessária e que os assassinados foram “heróis lutando pela paz”.

Reflexão final - Meu dicionário termina aqui, poderia ter muitas palavras mais, mas estou cansada de olhar para mim mesma e ver quão horrível sou. Deixa ir até lá fora ver se encontro uma flor.

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