18 de outubro de 2020

A ESCURIDÃO QUE EU FIZ

(Escrito por uma eu adolescente, em 1977 ou 78

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
Sou preta, como você está vendo
Mas a cor da minha pele foi Deus quem pintou
E a cor da minha alma
Que também é preta
Essa fui eu quem fez

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
Minha casa que era de mansão
Cheia de vozes
Barulho gostoso na orelha e um homem danado de bom
Essa casa foi Deus quem me deu
Mas minha casa de agora
Esse barraco preto, escuro e “fidido”
Que não tem barulho gostoso nem tem homem bom
Essa casa fui eu quem fez

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
E aquele homem que eu tinha
Aquele homem danado de bom
Que me dava comida me dava agasalho e cobria meu chão
Aquele homem foi Deus quem me deu
Esse homem que me tem agora
Feia suja podre e crua
Que me rasga as entranhas como doença que é faca que mata
Que me bate na cara e me joga no chão
Algumas moedas que eu cato me arrastando
Como um animal
Esse homem
Podre como eu
Fui eu mesma quem fiz

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
Aquela criança bonita que eu tinha
Que ria gostoso que dava tapinha e me chamava de mãe
Aquela criança foi Deus quem me deu
Essa saudade de uma criança que tinha o sol no sorriso
Essa saudade de ser chamada de mãe
Que eu sinto agora
Essa saudade fui eu mesma quem fiz

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
Aquela cara bonita que eu tinha
Pele lisinha
Macia como pêssego maduro
Com aquele sorriso de juventude gostosa que eu tinha na boca
Aquela cara bonita foi Deus quem me deu
Essa cara que eu tenho agora
Com essas rugas que rasgam toda a beleza que a gente tinha
Com pelancas caindo e papas nos olhos
Fui eu quem fiz

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
Aquele corpo que eu tinha em mim
Que era esbelto que era torneado arisco e bonito como ele só
Aquele corpo que muita gente quis
Foi Deus quem me deu
Esse corpo de velha que eu tenho agora
Esse corpo que até cheira mal de tanta sujeira
De tanta podridão
Esse corpo fui eu quem fiz

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
O tempo que eu vivia e que era tempo de paz
o tempo que eu tinha bonito cheiroso e que parecia não ter mais fim
Aquele tempo foi Deus quem me deu
O tempo que eu vivo agora
Que se arrasta em longas horas
Sem ter mais fim
Que me deprime
Que me maltrata e me acaba
Fui eu quem fiz

— Muito prazer meu nome é Marta e sou uma mulher feliz
O champanhe que eu bebia
Com espuma branca e clara como uma vida feliz
Aquele champanhe foi Deus quem me deu
Esse veneno que eu bebo agora
Com cor escura com espuma negra
Como a escuridão que eu fiz

— Muito prazer meu nome era Marta e eu era uma mulher feliz

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