16 de outubro de 2020

LEITORES

Acabamos de capturar três bípedes pelados. Preparar as conchas e os sensores, veremos se há algo aproveitável aqui – disse o ser, em uma linguagem de silvos e estalos, olhando com seus seis olhos e manipulando com quatro de seus seis braços os estranhos instrumentos que brilhavam diante de si. Tinha aparência de um grande aracnídeo com uma faixa verde no meio do corpo. Próximos a ele havia outros dois seres como ele que, ao receber o aviso, movimentaram-se em direção às conchas que enchiam dois terços da grande sala metálica na qual estavam, os movimentos deles também eram de aracnídeos. As conchas eram fechadas de tal forma que não se podia ver sinais de abertura ou de possibilidade de abertura, pareciam capsulas ovais inteiriças fabricadas sem emenda, eram transparentes, pouco maiores e mais largas do que uma cama de solteiro, estavam em pé, arrumadas em fileiras e ao lado de cada uma delas havia uma espécie de suporte com uma tela iluminada. Os dois seres começaram a tocar as telas de três conchas. A sala continha 120 conchas e era apenas uma das centenas de salas como aquela que havia naquela nave, fora outras centenas com conchas de tamanhos diferentes. Esses seres tinham capacidade e tecnologia para recolher todos os tesouros de um planeta inteiro em um período de tempo relativamente curto e sem correr nenhum risco. Caso houvesse algum tesouro a ser salvo, claro!

Estavam em uma nave gigantesca na órbita do terceiro planeta de uma pequena estrela amarela. Nenhum dos animais que habitavam o planeta conseguiria perceber que havia algo sobrevoando suas cabeças porque havia um eficiente sistema de camuflagem que a tornava totalmente indetectável para qualquer um dos sentidos naturais ou artificiais que os habitantes de qualquer um dos planetas explorados pudessem ter. Caso pudesse ser vista pareceria um imenso pedaço de cano metálico dobrado ao meio formando um ângulo de aproximadamente 40º. Era uma nave de pesquisa e coleta que, como mais uma de suas missões, estava ali para evitar uma catástrofe universal de grande porte. Os seres em seu interior trabalhavam incessantemente porque não tinham todo tempo do mundo para conseguir evitar a catástrofe iminente.

Quando as três conchas estavam preparadas, o mesmo ser que dera o aviso, ainda olhando e tocando os aparelhos que tinha diante de si e que, com bancadas, visores e painéis, tomava toda aquela parede da sala, deu a autorização de transporte. Enquanto isso os outros dois seres que, aparentemente, se diferenciavam do chefe apenas pelo tom mais claro da faixa verde no meio do corpo, aguardavam atentos aos monitores. Logo após a autorização, um facho estreito de luz branca como uma linha móvel subiu por cada uma das três conchas deixando, à sua passagem, três corpos que um habitante daquele planeta descreveria como uma mulher, um homem e uma criança do sexo feminino aparentando 8 ou 9 anos. Os aracnídeos que observavam o transporte viram três bípedes pelados, um deles menor do que os outros o suficiente para suporem que fosse uma cria.

Sem se voltar para onde estavam as capsulas, manipulando e observando atentamente os aparelhos diante de si com a ajuda das quatro mãos e dos seis olhos, o chefe dava as ordens e fazia as observações enquanto os dois auxiliares, por sua vez, manipulavam e observavam os aparelhos ao lado de cada uma das três capsulas recentemente preenchidas.

- Escaneando corpo desde membros inferiores. Arquivando dados. Analisando tecidos externos e internos. Arquivando dados. Analisando sensibilidades táteis. Arquivando dados. Analisando composição dos órgãos internos. Arquivando dados. Localizando sistemas de interação e captação de dados transferíveis. Arquivando dados. Localizando órgão de armazenamento de dados acumulados. Arquivando dados. Escaneando dados armazenados em órgão de armazenamento de dados...

O chefe aracnídeo continuou a observar e manipular os aparelhos enquanto emitia sons variados que não eram palavras mas que poderiam ser onomatopeias, fez isso durante alguns minutos e então se aproximou mais dos aparelhos, emitiu um som mais alto e se moveu no que pareceu pequenos saltos que chamaram a atenção dos outros dois que se voltaram para ele, que se afastou dos aparelhos, voltou-se para os dois e gritou:

- Encontramos!

Os três correram para o espaço entre os aparelhos e as conchas, abraçaram-se e fizeram uma espécie de dança emitindo sons altos e sincopados, aparentemente dançando e cantando em comemoração, depois voltaram a seus postos e o chefe retomou suas atividades com uma certa urgência.

- Arquivar os últimos dados! Acordar decifradores! Transferir dados para sala de arquivos decifráveis! Transferir informações sobre animais escaneáveis às salas coletoras!

Correu para o outro extremo da bancada onde se postou diante de outros aparelhos que passou a manipular enquanto dava ordens em tom urgente e aparentemente animado:

- Preparar todas as câmaras! Acordar coletores! Recolher bípedes pelados! Escanear órgãos de armazenamento de dados! Localizar tesouros! Armazenar tesouros! Arquivar tesouros! Preparar grupos de pesquisas linguísticas! Iniciar trabalhos! Contar população! Calcular tempo necessário! Calcular tempo disponível! Organizar turnos! Acordar arquivistas! Preparar salas de tesouro! Arquivar tesouro decifrado!

Uma hora depois todas as conchas daquela sala estavam ocupadas, outros oito seres aracnídeos chegaram e, junto com os dois que já lá estavam, passaram a manipular os aparelhos das laterais das conchas de forma organizada enquanto o chefe continuava a manipular freneticamente os instrumentos no outro lado da sala. Quem observasse atentamente veria que cada vez que um dos seres se afastava de uma concha dirigindo-se à seguinte, a faixa de luz descia enquanto o bípede pelado que estava lá dentro desaparecia e, em seguida, subia novamente enquanto outro bípede pelado aparecia no lugar do que desapareceu e assim ficava até que um dos seres chegava àquela concha, manipulava os aparelhos e se afastava, então a faixa de luz descia novamente, o bípede desaparecia, a luz subia em seguida e outro bípede aparecia no lugar. Essa sequência ritmada estava acontecendo igualmente em todas as conchas e a movimentação dos dez seres de uma para a outra também seguia um ritmo organizado. Nenhum bípede pelado poderia entender os símbolos e luzes que apareciam e desapareciam, tanto nos aparelhos colocados nas laterais das conchas quanto nos outros, mais numerosos e maiores, que o outro ser continuava a manipular movimentando-se lateralmente ao longo de uma das paredes da sala metálica em que estavam mas, caso algum deles pudesse ver e entender, saberia que havia ao todo seiscentas salas de conchas iguais naquela nave e que em todas elas estavam acontecendo as mesmas cenas no mesmo ritmo, e havia outras centenas e centenas de salas parecidas porém com capsulas de tamanhos diferentes, em alguns casos tão grandes que caberia um dinossauro em cada uma delas. Veria que todas as salas nas quais as capsulas tinham como receber um bípede pelado estavam sendo usadas. Se pudesse passear pela nave encontraria mais trezentas salas com o dobro do tamanho daquela, em cada uma delas veria uma centena de seres com faixas amarelas no meios do corpo parados e concentrados diante de painéis suspensos com duas grandes telas nas quais havia imagens do que o bípede pelado reconheceria como páginas de livros. Dependendo de quem fosse esse bípede pelado hipotético, ele poderia reconhecer e até ler uma ou mais das páginas e perceberia que a página ao lado da que podia ler estava sendo escrita com caracteres que ele, decididamente, não seria capaz de reconhecer, às vezes uma parte era apagada, depois escrita novamente, até que estivesse completa. Se pudesse esperar tempo suficiente diante de uma das duplas de telas, o bípede pelado veria que quando a tela que estava sendo escrita ficava completa as duas imagens desapareceriam e outra página aparecia em uma das telas enquanto o ser, depois de muito tempo apenas observando, começava a escrever, apagar partes, escrever novamente, até completar mais essa página e o processo reiniciar.

Depois disso, o bípede pelado poderia encontrar mais duzentas e quarenta salas diferentes dos dois tipos anteriores. Essas eram muito altas, cheias de placas grossas como painéis muito altos, largos e finos, colocados em fileiras que formavam longos corredores por onde se movimentavam quatro seres aracnídeos com faixas vermelhas no meio do corpo que seguiam a rotina de ir até um painel, manipular alguns instrumentos, retirar uma pequena placa vítrea do tamanho de uma pastilha de chiclete de um orifício e caminhar até um dos painéis, introduzir a placa, manipular uma espécie de fita de luz vertical na lateral da placa onde uma luz mais intensa partia de onde a placa vítrea foi introduzida e subia a uma altura que variava, depois andava, para a direita ou para a esquerda, parava a uma distância que também variava e se apagava. Então o ser voltava ao painel e repetia a operação, às vezes trazendo duas ou três placas vítreas em lugar de apenas uma. Não seria difícil a um bípede pelado medianamente inteligente perceber que os seres aracnídeos estavam traduzindo páginas de livros, gravando talvez os livros inteiros naquelas placas vítreas e arquivando-as de forma organizada naquelas salas que provavelmente eram grandes bibliotecas.

Durante setenta e dois dias as atividades continuaram ininterruptamente e no mesmo ritmo nos três tipos de salas da imensa nave que nenhum habitante do planeta podia detectar. Os bípedes pelados, que chamavam a si mesmos de humanos, não perceberam que tinham sido transportados um a um enquanto dormiam, a partir do terceiro dia de permanência da nave na órbita do planeta. Os demais animais que habitavam o planeta, incluindo os microscópicos, tiveram apenas uns poucos indivíduos transportados e perceberam menos ainda. Depois desses setenta e dois dias as salas que continham conchas foram abandonadas e a nave começou a se afastar do planeta.

Dentro da nave imensa havia uma sala imensa onde cabiam sem aglomeração todos os seres aracnídeos que trabalharam durante esses setenta e dois dias de coleta e os seres que ainda trabalhavam na decodificação e armazenamento dos tesouros recolhidos no planeta que agora deixavam para trás. Pouco depois de a nave começar a se afastar do planeta, nessa sala imensa houve uma festa que durou todo o tempo necessário para que a nave deixasse o sistema solar e para que quem olhasse para o espaço além das grandes janelas da sala onde a festa acontecia pudesse ver a luz do enorme meteoro que se encaminhava diretamente para o planeta azul que acabaram de deixar. Comemoravam o fato de terem conseguido salvar todos os tesouros existentes antes que os bípedes pelados pudessem detectar a iminente chegada do meteoro e, principalmente, antes da destruição do planeta. Não demoraria muito para que isso acontecesse, mas os tesouros não se perderiam graças àquela nave de pesquisa que tinha toda a tripulação e a tecnologia necessárias para fazer a coleta segura dos tesouros sem entrar em contato direto com nenhum dos animais do planeta e, portanto, sem correr o risco de levar consigo algum micro-organismo capaz de causar qualquer tipo de dano às suas sociedades e colônias. A tripulação da nave tinha uma razão muito boa para a festa da qual todos participavam com entusiasmo. Depois de todo o trabalho que fizeram, seu povo estava muito mais rico. De conhecimento, o maior tesouro do universo!

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