23 de dezembro de 2020

VIDA COM JUGO IGUAL

Dom *

Tu a imaginavas, sempre quieta, atenta.
A perscrutar na máquina a conta lenta
A separar papéis, a folhear papéis...
A carimbar papéis precisos e vagos
E foste, cavaleiro andante, elevá-la
À triste e honrada condição de vassala

Ouvias o martelar surdo da prensa
Condicionado metal à vontade do homem
E prendias tua atenção aos movimentos
Pois precisaras dos dedos, do dedo...
Para reservá-la para ti, dos poucos que te restavam,
Todos os momentos

Pois claro, se a felicidade (risos) está condicionada
Ao pedaço de papel, no reconhecimento da família.
Cauteloso, inútil e cordial como um aperto de mão.
Enfim, um genro provável! Pobre, mas decente!
(Como a decência é indecente!)
Condicionaste-te, então, era o preço.
E a tiveste contigo na cama (pelo menos uma vez)
E a sentiste, sossegada, corpo e vontade
Saciadas, diluir-se no seu peito, e dormir.

E acordavas, faminto e apressado.
E suado a violavas
E rindo a alma, ias tomar banho e te vestias,
E a beijavas, desolado e levemente farto.
E iam apertar os mesmos botões das mesmas máquinas.
Ambos, cabeças curvas, olhos tristes, registrados vagabundos,
Humilde operário, diligente escriturária,
Financiar (a longínquo prazo pela caixa)
Vosso acanhado mundo

E reclamavas dos dedos ásperos sobre teus seios
Do ronco, dos arrotos, da roupa ordinária, da falta de tudo.
Do riso forçado, do nada colorido.
E sentias saudades da voz rouca, dos gestos bruscos, do desejo contido,
Iniciando um fogo que até agora não veio
Dos doces de feira, dos presentes baratos
Com os quais te seduzias...
O futuro parecia tão bonito e já faz tanto tempo...

E agora que tens assegurado teu papel doméstico
Com a vida no ventre
Dizes que, por ora, vontade não sentes.
Que queres dormir
E dormes

Um sonho agitado, cheio de giletes, soda cáustica
E atropelamentos
E o aumento que o chefe não deu?
(porque tu não deste)

E repartem a solidão nas vossas noites
(pois dias não há), o leite, a comida mal feita,
A comida mal feita
Esperam que as coisas piorem
Doidos pra verem acabar
O que devia nem ter começado

Então acordam e se olham e se medem e se pesam
(Já velhos e tão moços!)

E sentem saudades do que podiam ter sido,
Se não tivesse, se não fosse, se não houvesse.
Mas tem, e é, e existe.
E nada mais resta senão chorar.

Bem baixinho, pois o bebê
(Quisera não nascesse!)
Pode acordar.

* Dom é pseudônimo de uma pessoa muito especial. 
Foi ele que escreveu esse poema e o deu de presente pra mim.

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