26 de junho de 2020

DIVINA

Autor: Dom

Do divino tédio fez-se o infinito
E do infinito fez-se a poeira
E da poeira fez-se o grão-Terra
E na Terra formaram-se os aquosos mares
E os sólidos lugares
Cheios de pessoas e,
De muitas delas, todas diferentes.
De duas delas apenas coincidentes
Fez-se o que, para as pessoas,
Era uma menina, infelizmente.

Triste, porque primeira.
Feliz, porque perfeita e inteira.
Cresceu, apanhando e gritando.
Exigindo e apanhando
Apanhando e querendo
E, portanto, aprendendo.
E desprezando
A si e às outras pessoas

Fez-se moça e curiosa, sensível e triste.
Do sorriso fácil, corpo esguio e seios em riste.
Foi às escolas e aprendeu o dispensável
Sentiu as pessoas, tornou-se agradável.
E continuou inalcançável

Deu-se a um (como eu te amo!)
Decepcionou-se com outro (E daí)
Conheceu um terceiro (E porque não?)
Encontrou um quarto (e vários quartos)
E continuou confusa

Com o quarto, talvez num quarto.
Quem sabe num carro, quem sabe.
Alcançou o impossível
O útero rebelde se descuidou
Com a habitual e fértil chuva
E num outro quarto, muito branco,
Nasceu o que, para as outras pessoas,
Era um menino, finalmente!
No meio de tantas pessoas indiferentes
De duas pessoas tão diferentes
Apenas coincidentes
Felizmente

Arrancada do saudável e familiar jardim
Plantada com firmeza no centro de mim
Asquerosa e nojenta erva daninha lançada diante
Em cujos braços a nova semente se aninha confiante
Negado o sangue, sempre condicionado aos comportamentos.

Perigosa cobra lançada às pedras, longe.
Acalentando o sono do menino que lhe toma todos os momentos
Martelando na cabeça ainda os infames argumentos

Você deve sair, não importa para onde.
(quem sai na chuva tem que se molhar)
Você deve sair, não importa para onde.
(temos uma reputação a zelar)
Você deve sair, não importa para onde.
(porque de você o clã está farto)
Você deve sair, não importa para onde.
(que interessa se só tem três meses de parto?)
Você deve sair, não importa para onde.
(pois nos aborrece a cada momento)
Você deve sair, não importa para onde.
(É apenas uma mulher, sem rendimento)
Você deve sair, não importa para onde.
(nós te queríamos muito no nosso meio)
Você deve sair, não importa para onde.
(de boas intenções o inferno está cheio)

Como é difícil, magrela, alinhavar negras emoções
Quando a vontade é espalhar pela folha inúmeros palavrões
Tentando transmitir pra você metade do que eu sinto
Recebendo de você um décimo do que você sente
E quem sabe assim, me apaziguar.

Cada vez que eu sei de você coisas que eu sei e não gosto
Tenho que reunir cacos da figura que eu não quero
Junto às preciosas pedras que eu venero
E prosseguir, mãos no escuro, evitando as aguçadas pontas,
Afagando cuidadosamente os verdadeiros traços do teu eu.

PS: Dom é como eu chamava o homem que viria a ser meu marido, ele me deu esse poema depois que fui expulsa de casa por ter o filho dele antes de nos casarmos.

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