10 de junho de 2020

“NO PRINCÍPIO ERA O CAOS”


Eu gosto muito da primeira frase do primeiro livro da minha coleção de mitologia grega: "No princípio era o caos". Sei que a frase é o início da Teogonia, de Hesíodo (En arché én hó khaos), mas gosto de pensar nela como “A primeira frase do primeiro livro da minha coleção de mitologia grega”. Adoro mitologia greco-romana, e adoro minha coleção, que roubei fascículo a fascículo do bolso do meu pai.

Meu pai era macho alfa, se a gente calculava mal e pedia alguma coisa quando ele não estava de bom humor, ele dizia “Não!” e não voltava atrás jamais porque voltar atrás era sinal de fraqueza. Eu calculei mal, vi a propaganda da coleção que sairia em fascículos semanais, fiquei empolgada demais e esqueci a regra de ouro: Verificar o humor do meu pai antes de pedir qualquer coisa. Corri até ele gritando “Pai!, pai!” e falei da coleção aos trancos e cegamente levada pelo entusiasmo. Ele mal me ouviu e disse “Não”.

Roubá-lo era uma aventura! Ele trabalhava à noite, dormia durante o dia e ficava furioso quando alguém o acordava. Eu só o roubava quando não tinha ninguém em casa. Fechava a porta da sala, colocava um pano na janela para escurecê-la e não entrar luz no quarto quando a porta fosse aberta, então girava a maçaneta e abria a porta em câmara lenta para que não fizesse barulho, atravessava o quarto pé ante pé tateando no escuro e chegava até onde estava a calça do meu pai, pendurada no puxador do guarda-roupas.

Meu pai levava no cinto um chaveiro barulhento que no dia a dia era útil pra gente saber quando ele estava chegando, mas que não era útil naquele momento Eu tinha que achar o chaveiro primeiro e segurá-lo com cuidado na mão fechada para que não fizesse barulho, então enfiava a outra mão no bolso da calça e puxava uma nota. Com a nota apertada na mão, fazia todo o percurso inverso. Tudo isso demorava muito tempo e eu executava cada fase do processo quase sem respirar e parando a cada ronco mais forte, o coração e o cérebro em estado de alerta e de medo. Se meu pai acordasse eu levaria uma surra de cinta daquelas de deixar o corpo marcado por semanas.

Só depois de tirar o pano da janela e de abrir de novo a porta da sala, só depois de respirar aliviada, a salvo no meu quarto, é que eu via o valor da nota que tinha conseguido pegar. Se fosse uma nota alta, sentia que o crime compensa e comprava vários fascículos de uma vez, mas tinha dias que era uma nota baixa e eu só podia comprar um fascículo, e dias ainda piores em que a nota era tão baixa que não dava para comprar nenhum; então eu tinha que engolir a frustração da aventura inútil e esperar outro dia, quando ninguém estivesse em casa, para me aventurar de novo.

Fiz um acordo com o jornaleiro perto da escola e ele guardava os fascículos pra mim. Assim, de roubo em roubo e usando para comprar fascículos cada merreca que me caia na mão, completei a coleção e mandei encadernar. Anos depois, já adulta, contei pro meu pai o que tinha feito. Ele, que já não era mais o macho alfa da minha infância, me abraçou e quase chorou dizendo que tinha negado me dar a coleção por pura teimosia.

Agora a coleção está aqui, linda e velha como minhas lembranças.

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