7 de junho de 2020

A VELHICE CONTRARIANDO A FILOSOFIA


Lendo uma matéria em uma revista de filosofia (Ciência e vida – Filosofia – Ano – n° 10 – editora escala) deparei-me com um discurso tão meu conhecido e tantas vezes ouvido ou lido por mim que resolvi comentar mais uma vez já que estamos falando de filosofia e discordar radicalmente de filósofos reconhecidos é sempre uma temeridade excitante. A autora do artigo (Talita Cícero) é jornalista, mas cita vários filósofos em sua matéria que tem como objetivo, como praticamente tudo que leio sobre o assunto, convencer as pessoas velhas de que a velhice é maravilhosa e a gente deve sempre estar feliz com ela e por ela. Discordo enfaticamente!

Citando a filósofa Edi Mail Bohrer, Talita concorda que: “Não existe outra forma de encarar a velhice se não aceitando-a e vivendo-a.” Mais adiante uma citação de Sêneca: “Assim como tudo o que é natural, a velhice também é boa, e não revela decadência.” (filósofos também mentem, e muito!). Depois outra citação da mesma Edi Mail Bohrer: “Todos nós vamos envelhecer e morrer. Precisamos aceitar a nossa finitude terrena.” Com essas citações fiquei enjoada (novamente!) da palavra “aceitar”. Aceitar é pura passividade, aceitar é não pensar, não questionar, não lutar, não agir, não fazer NADA! Aceitar é estar morto! Eu não aceito! E começo não aceitando essa ideia de que só se pode ser feliz aceitando.

Primeiro temos que aceitar a dependência, as imposições, os castigos, as ordens nem sempre realmente sensatas dos pais; depois temos que aceitar a palavra dos professores mesmo quando eles próprios não sabem o que e do que estão falando, e a palavra de seres humanos como nós que se acham melhores porque se colocaram na posição de representantes e intérpretes da palavra de um deus que, coincidentemente, sempre concorda com eles; daí temos que aceitar ordens dos chefes, imposições do mercado, sobrecarga de trabalho e preocupação, obrigações sociais, impostos absurdos que desaparecem nos bolsos dos ladrões que governam nosso país; e, por fim, temos que aceitar a velhice e a morte. Bela maneira de não viver!

Temos que viver na dependência dos nossos pais enquanto não podemos suprir nós mesmos as nossas necessidades básicas, mas nosso objetivo, e o que nossos próprios pais esperam de nós, é que não aceitemos essa dependência a não ser como temporária. Saímos dela assim que conseguimos ganhar nosso próprio sustento. Temos ainda que aceitar, de nossos pais e dos adultos que nos rodeiam e são responsáveis por nós, imposições que são colocadas com o intuito de nos proteger e nos fazer crescer a ponto de nos tornarmos independentes dessas imposições, quando teremos condições de agir por nós mesmos e escolher com consciência nossos caminhos. Temos também que aceitar castigos impostos pelos nossos pais, desde que condizentes no tempo e no espaço, com os fatos que os geraram, quando cometemos um erro e podemos ver claramente que o fizemos. Para isso é obrigação dos pais ensinarem, ampararem e orientarem seus filhos, mas, infelizmente, todos sabemos que tem uma quantidade assustadoramente grande de pais que não fazem nada disso e só castigam e dão ordens (às vezes até espancam) para mostrar poder ou para obter paz e tranquilidade livrando-se da responsabilidade que assumiram (ou deveriam ter assumido) quando tiveram filhos.

Temos sim que aceitar a palavra dos professores que nos mostram caminhos para que possamos ir além deles e que estão na frente da sala de aula para ensinar a conhecer e não impor conhecimentos que eles próprios não possuem e se arvoram de ter. Devemos ouvir as palavras de seres humanos como nós e pensar sobre elas decidindo se vamos ou não segui-las, para isso temos que usar nossa inteligência e nossa liberdade de questionar e descobrir por nós mesmos, e nunca, nunca mesmo, ficar repetindo essas palavras sem compreendê-las, sem pensar sobre elas, sem usar nosso cérebro e nossa razão.

Novamente, temos que aceitar uma série de imposições sociais porque é em sociedade que vivemos e muitas dessas imposições visam o bem comum; Algumas delas temos que aceitar porque estamos fazendo uma troca e dando, por exemplo, nossa força de trabalho e nossa observância das regras em troca do que necessitamos para sobreviver. Mas essa aceitação não deve ser passiva e ignorante, ao contrário, deve ser ativa e esclarecida a ponto de nos permitir lutar – mudar de emprego, entrar para um sindicato, votar em outro candidato, comprar outros produtos – e gerar mudanças quando não concordamos com a situação em que vivemos. Se não fosse a não-aceitação social, ainda estaríamos nas árvores ou nas cavernas, comendo carne crua!

Finalmente, sobre a velhice, temos sim que saber que ela é o nosso destino natural, que a morte é o nosso fim irrevogável e que não temos poder para mudar nenhuma das duas situações; não reconhecer isso é inocência patológica. Mas daí a aceitar passivamente só porque é natural e (pior ainda) achar bom! Ah, daí vai uma grande distância! Se todo mundo aceitasse a velhice como querem essas matérias de autoajuda disfarçadas em filosofia, não teríamos saído de uma expectativa de vida de menos de 30 para uma de mais de 60 anos! Não teríamos os inumeráveis avanços da medicina e da cosmética que fazem com que uma pessoa de quarenta e uma de sessenta em muitos casos não sejam tão diferentes assim no que diz respeito à aparência e à qualidade de vida; e não porque a pessoa de quarenta aparenta mais idade mas porque a de 60 aparenta menos.

Não aceitar a velhice não é, obrigatoriamente, sinônimo de infelicidade. Os estudiosos do assunto ligados à medicina e à filosofia estão precisando rever urgentemente seus conceitos! Não aceitar a velhice pode significar simplesmente não aceitar botar no coração o mesmo inverno que a natureza nos coloca nos cabelos. Pode significar saber que a decrepitude está próxima mas estar sempre disposto a adiá-la para amanhã. Não aceitar a velhice pode significar falar sobre o que se sente, desabafando a alma e aliviando o espírito (falar a verdade e não invenções mentirosas de cursinhos de autoajuda!). Não aceitar a velhice pode ser cobrar com veemência (e participar inclusive) mais descobertas, mais avanços, mais qualidade, mais conhecimento, mais respeito, mais compreensão.

Aceitar é ser cordeiro indo para o abate sem um balido. Não aceitar é sair da vida molecamente, olhando para a morte e mostrando o dedo médio!

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