Lendo uma matéria em
uma revista de filosofia (Ciência e vida – Filosofia – Ano – n° 10 – editora
escala) deparei-me com um discurso tão meu conhecido e tantas vezes ouvido ou
lido por mim que resolvi comentar mais uma vez já que estamos falando de
filosofia e discordar radicalmente de filósofos reconhecidos é sempre uma
temeridade excitante. A autora do artigo (Talita Cícero) é jornalista, mas cita
vários filósofos em sua matéria que tem como objetivo, como praticamente tudo
que leio sobre o assunto, convencer as pessoas velhas de que a velhice é
maravilhosa e a gente deve sempre estar feliz com ela e por ela. Discordo
enfaticamente!
Citando a filósofa Edi
Mail Bohrer, Talita concorda que: “Não existe outra forma de encarar a velhice
se não aceitando-a e vivendo-a.” Mais adiante uma citação de Sêneca: “Assim
como tudo o que é natural, a velhice também é boa, e não revela decadência.”
(filósofos também mentem, e muito!). Depois outra citação da mesma Edi Mail
Bohrer: “Todos nós vamos envelhecer e morrer. Precisamos aceitar a nossa
finitude terrena.” Com essas citações fiquei enjoada (novamente!) da palavra
“aceitar”. Aceitar é pura passividade, aceitar é não pensar, não questionar,
não lutar, não agir, não fazer NADA! Aceitar é estar morto! Eu não aceito! E começo
não aceitando essa ideia de que só se pode ser feliz aceitando.
Primeiro temos que
aceitar a dependência, as imposições, os castigos, as ordens nem sempre
realmente sensatas dos pais; depois temos que aceitar a palavra dos professores
mesmo quando eles próprios não sabem o que e do que estão falando, e a palavra
de seres humanos como nós que se acham melhores porque se colocaram na posição
de representantes e intérpretes da palavra de um deus que, coincidentemente,
sempre concorda com eles; daí temos que aceitar ordens dos chefes, imposições
do mercado, sobrecarga de trabalho e preocupação, obrigações sociais, impostos
absurdos que desaparecem nos bolsos dos ladrões que governam nosso país; e, por
fim, temos que aceitar a velhice e a morte. Bela maneira de não viver!
Temos que viver na
dependência dos nossos pais enquanto não podemos suprir nós mesmos as nossas
necessidades básicas, mas nosso objetivo, e o que nossos próprios pais esperam
de nós, é que não aceitemos essa dependência a não ser como temporária. Saímos
dela assim que conseguimos ganhar nosso próprio sustento. Temos ainda que
aceitar, de nossos pais e dos adultos que nos rodeiam e são responsáveis por
nós, imposições que são colocadas com o intuito de nos proteger e nos fazer
crescer a ponto de nos tornarmos independentes dessas imposições, quando
teremos condições de agir por nós mesmos e escolher com consciência nossos
caminhos. Temos também que aceitar castigos impostos pelos nossos pais, desde
que condizentes no tempo e no espaço, com os fatos que os geraram, quando
cometemos um erro e podemos ver claramente que o fizemos. Para isso é obrigação
dos pais ensinarem, ampararem e orientarem seus filhos, mas, infelizmente,
todos sabemos que tem uma quantidade assustadoramente grande de pais que não
fazem nada disso e só castigam e dão ordens (às vezes até espancam) para
mostrar poder ou para obter paz e tranquilidade livrando-se da responsabilidade
que assumiram (ou deveriam ter assumido) quando tiveram filhos.
Temos sim que aceitar a
palavra dos professores que nos mostram caminhos para que possamos ir além
deles e que estão na frente da sala de aula para ensinar a conhecer e não impor
conhecimentos que eles próprios não possuem e se arvoram de ter. Devemos ouvir
as palavras de seres humanos como nós e pensar sobre elas decidindo se vamos ou
não segui-las, para isso temos que usar nossa inteligência e nossa liberdade de
questionar e descobrir por nós mesmos, e nunca, nunca mesmo, ficar repetindo
essas palavras sem compreendê-las, sem pensar sobre elas, sem usar nosso
cérebro e nossa razão.
Novamente, temos que aceitar uma série de
imposições sociais porque é em sociedade que vivemos e muitas dessas imposições
visam o bem comum; Algumas delas temos que aceitar porque estamos fazendo uma
troca e dando, por exemplo, nossa força de trabalho e nossa observância das
regras em troca do que necessitamos para sobreviver. Mas essa aceitação não
deve ser passiva e ignorante, ao contrário, deve ser ativa e esclarecida a
ponto de nos permitir lutar – mudar de emprego, entrar para um sindicato, votar
em outro candidato, comprar outros produtos – e gerar mudanças quando não
concordamos com a situação em que vivemos. Se não fosse a não-aceitação social,
ainda estaríamos nas árvores ou nas cavernas, comendo carne crua!
Finalmente, sobre a
velhice, temos sim que saber que ela é o nosso destino natural, que a morte é o
nosso fim irrevogável e que não temos poder para mudar nenhuma das duas
situações; não reconhecer isso é inocência patológica. Mas daí a aceitar passivamente
só porque é natural e (pior ainda) achar bom! Ah, daí vai uma grande distância!
Se todo mundo aceitasse a velhice como querem essas matérias de autoajuda
disfarçadas em filosofia, não teríamos saído de uma expectativa de vida de
menos de 30 para uma de mais de 60 anos! Não teríamos os inumeráveis avanços da
medicina e da cosmética que fazem com que uma pessoa de quarenta e uma de
sessenta em muitos casos não sejam tão diferentes assim no que diz respeito à
aparência e à qualidade de vida; e não porque a pessoa de quarenta aparenta
mais idade mas porque a de 60 aparenta menos.
Não aceitar a velhice
não é, obrigatoriamente, sinônimo de infelicidade. Os estudiosos do assunto
ligados à medicina e à filosofia estão precisando rever urgentemente seus
conceitos! Não aceitar a velhice pode significar simplesmente não aceitar botar
no coração o mesmo inverno que a natureza nos coloca nos cabelos. Pode significar
saber que a decrepitude está próxima mas estar sempre disposto a adiá-la para
amanhã. Não aceitar a velhice pode significar falar sobre o que se sente,
desabafando a alma e aliviando o espírito (falar a verdade e não invenções
mentirosas de cursinhos de autoajuda!). Não aceitar a velhice pode ser cobrar
com veemência (e participar inclusive) mais descobertas, mais avanços, mais
qualidade, mais conhecimento, mais respeito, mais compreensão.
Aceitar é ser cordeiro
indo para o abate sem um balido. Não aceitar é sair da vida molecamente,
olhando para a morte e mostrando o dedo médio!
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