17 de junho de 2020

APESAR DOS AMIGOS

         Como todo mundo, recebo lembranças de religiosidade direta e indiretamente em todas as formas e por todas as vias de comunicação e praticamente em tempo integral. A diferença, e assumo minha culpa por isso, é que muitas delas me irritam, me aborrecem, me revoltam, acionam em alto e bom som o meu alarme “antiestupidez”. Daí eu fico brava, respondo e pode acontecer de amigos ficarem ofendidos. Desculpem, mas sou sempre tentada a responder mensagem muito estúpidas. Se não foi você quem criou, na minha opinião, minha resposta pode ajudar você a perceber a estupidez e não cair mais nesse tipo de conversa; se for você quem criou, acho que ajuda mais ainda: você pode perceber a estupidez, apagar a mensagem e não repetir esse tipo de asneira. Pode parecer pretensão, talvez seja, mas acho que realmente estou prestando um serviço.
          Exemplos são fartos, como aquela historinha do menino que faz xixi na roupa em plena aula. Depois de pedir a deus que o salve, ele é salvo, não por deus mas por uma coleguinha de classe, uma menina que teve a sensibilidade de perceber o que acontecia e a inteligência de simular um tropeço e derramar um copo d’água sobre o menino para criar uma situação que o livrasse do vexame. E ela explica a ele, depois, que fez isso porque já passou por essa situação uma vez e sabe o quanto é desagradável. Acontece que o gesto nobre da garota é recompensado com desprezo e ofensas vindos dos outros alunos, que a acusam de não saber fazer nada direito e a afastam por ter sido “desastrosa”. O menino salvo agradece a deus. Não faz nada para ajudar a menina que o salvou; não mostra a nobreza dela. 
          A pessoa criou a mensagem colocando lindas fotos, musiquinha adequada e palavras de fé alertando-nos para a “bondade” do deus que atendeu a oração do menino e livrou-o do sofrimento; mas essa pessoa parece não ter pensado um segundo sequer na garotinha que passou por situação constrangedora DUAS VEZES, mesmo tendo ela, embora tão pequena, mostrado o melhor caráter que se pode esperar de um ser humano. Será que esse ser religioso ao ponto de cegueira não se deu ao trabalho de sequer considerar a menina só porque a história não diz que ela tenha rezado em algum momento?
          É esse tipo de cegueira racional que leva pessoas que se acham boas e santas a cometerem crimes, agirem com injustiça, desprezarem os melhores e mais nobres valores humanos. Foi esse tipo de mentalidade estreita que mostrou ter o tal “bispo excomungador”; que líderes religiosos visivelmente estão mostrando ter quando abominam os homossexuais, condenam o uso de preservativos e MENTEM afirmando que camisinha não evita AIDS; é esse o tipo de mentalidade estreita que os líderes religiosos mostram ter quando continuam pedindo dinheiro aos fiéis, e é o que os próprios fiéis mostram, até sem o notar, quando em lugar de ajudar uma criança a sair da rua aprovam a pena de morte e ajudam a engordar a fortuna desses líderes ladrões.
          Se me revolto com essas mensagens, quero crer que tenho motivos mais do que justificados. Ao longo dos anos tenho visto uma crescente intolerância que me preocupa sinceramente. A razão da revolta é a percepção de que as pessoas se recusam a pensar e, o que é muito pior, ensinam as crianças a não pensar. Vejo em sala de aula, aluninhos de quinta série, ofendendo colegas por causa da religião com palavras e frases que não são deles, que ouviram em casa dos pais e na igreja do padre ou do pastor. Algumas dessas crianças me olham como se eu fosse um extraterrestre quando digo que não tenho religião.
          Quando trabalho com o tema preconceito eles são rápidos em citar a bíblia para afirmar que “Se encontro um “viado” na rua eu caceto mesmo!”, “Pode descer a lenha sim, professora, deus não gosta dessa gente, tá na bíblia!”. É só permitir uma conversa a respeito da homossexualidade que qualquer professor corre o risco de ouvir frases desse tipo, pronunciadas por alunos desde as primeiras séries do ensino fundamental até os já adultos nas aulas do EJA. E o mais terrivelmente assustador é que se levantar o problema na sala dos professores, pode ouvir frases semelhantes dos próprios colegas. Estou falando isso porque eu as ouvi, não inventei as frases acima, são apenas dois exemplos de frases que ouvi de alunos na minha sala de aula. O triste é que a grande maioria dos trabalhos abordando preconceito desenvolvidos nas escolas ainda exclui qualquer menção à homofobia e principalmente à transfobia.
          Textos do tipo dessa mensagenzinha idiota que citei acima costumam ser usados nas escolas, por professores de ensino religioso e pela direção e coordenadoria. Eu o vi pela primeira vez em uma reunião de professores. As pessoas não pensam. Eu não entendo por que pessoas cultas, inteligentes e boas se recusam a pensar quando o assunto é religião. Em nome de um “amor a deus”, de uma adesão irrestrita ao que afirmam ser a “verdade”, as pessoas esquecem o simples e básico sentimento de respeito ao próximo; e nem sequer se dão conta disso!
          É comum, quase obrigatório, afirmar que não podemos falar mal de religião, que não se pode criticar qualquer crença ou manifestação religiosa. Não podemos nem sequer reivindicar o direito básico de ter um estado realmente laico como está definido na Constituição. Qualquer tentativa de mostrar que escola pública é um órgão público, nem mesmo pela redundância é levada a sério. Lá se faz orações no pátio com os alunos, se abriga missas e cultos evangélicos a propósito de qualquer coisa, se abarrota os quadros de avisos com imagens de santos, Jesus e coisas do tipo acompanhadas de orações e trechos bíblicos. E temos que achar tudo muito lindo, muito educativo e muito bom!
          E os professores de ensino religioso comemoram o “dia da bíblia” mas nem sabem se existe um  “dia do alcorão”, comemoram com orações o dia da páscoa ensinando aos alunos seu valor religioso e até desprezando o apego ao chocolate como sendo um pecado contra o “verdadeiro sentido da data” mas não falam nada sobre o dia de jogar rosas no mar em homenagem a Yemanjá. Aliás, muitos desses professores nem citam o candomblé como religião; ou ignoram totalmente, como se não existisse, ou falam que é “coisa do capeta”. Mas, apesar disso, tente alguém dizer que não aprova a existência dessa disciplina! no mínimo será acusado de estar tentando tirar o trabalho dos colegas.
          Droga, eu tenho amigas que dão aula de ensino religioso, amigas que sei serem pessoas maravilhosas, amigas que considero muito e de quem gosto muito, não quero ofendê-las, não quero magoá-las, não quero fazer com que pensem que tenho algo contra elas. Mas será possível que não posso mesmo dizer que aulas de ensino religioso são um retrocesso histórico e deveriam ser ilegais por serem basicamente inconstitucionais?
          Fico brava! Fico irritada! Me sinto agredida! E não quero, não posso, não consigo deixar de gritar que odeio tudo isso; mesmo amando do mais profundo da minha alma os meus amigos que têm suas religiões, ou os que, mesmo sem serem religiosos, não partilham da minha raiva!

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