Estou voltando
exatamente agora do supermercado. Hoje está chovendo e a temperatura é baixa,
bastante baixa em comparação ao calor próximo dos 40 graus do último fim de
semana. Pois bem, com chuva e com frio, deitado na calçada ao lado da padaria
sobre um pedaço de papelão molhado, havia um rapaz de talvez 15 anos, vestindo
shorts e camiseta e dormindo encolhido com as mãos entre as pernas e a cabeça
coberta pelo boné. Do outro lado da rua, na calçada ao lado do supermercado,
debaixo de uma marquise, havia o que talvez fosse uma família com um adulto, ou
uma criança mais velha - não deu para
ter certeza porque estava com a cabeça e o corpo cobertos e no ponto mais
escuro - e duas crianças pequenas, uma menina e um menino. Os três dormiam
juntos, encolhidos e cobertos com pedaços de lençóis, também sobre pedaços de
papelão molhado. O menino pequeno, por estar mais para o lado de fora da
marquise, estava também provavelmente recebendo respingos da chuva.
Os quatro dormiam, um
de um lado três do outro lado da rua, na calçada de uma avenida movimentada do
Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa do Brasil do Futuro, a cidade das
olimpíadas de 2016 do país que tem aparecido como exemplo de desenvolvimento
nos quadros econômicos do mundo. Os quatro dormiam e além de, talvez, os
sonhos, não têm nada. E eu sinto aquele nó forte no meu peito impotente e me
grito alto e raivosamente para dentro do meu silêncio: E AINDA QUEREM ME
CONVENCER DE QUE EXISTE UM DEUS DE BONDADE QUE CRIOU ESSE MUNDO!
Alguém dirá que eu
poderia deixar de ser egoísta e, ao invés de amaldiçoar deus, ajudar essas
pessoas. Eu responderia que não recebo salário há um ano e meio, moro em um
cômodo único com banheiro e não tenho como abrigar quatro pessoas, e
acrescentaria que, mesmo que tivesse condições, isso não diminuiria minha raiva
porque sei que esses são quatro de uma quantidade muito maior de pessoas que
dormem em papelões e que não têm nada. Poderiam insistir dizendo que eu poderia
ajudar com doações a instituições de caridade e eu diria que isso também não
resolve porque há instituições de caridade e há doações e ainda assim continua
havendo pessoas que dormem em cima de papelões e não têm nada.
Outra pessoa diria que
esse quadro e essas cenas são culpa do homem e não de deus. Discursos e
discursos são feitos para provar que deus não tem culpa, não deseja e até sofre
com essas aberrações ainda mais do que eu. E eu respondo que esses discursos
não me convencem de forma nenhuma porque se existisse esse deus todo bondade,
com todo poder e toda onisciência que afirmam que esse deus tem, ele não teria
criado o mundo com a possibilidade de existir gente que dorme em pedaços de
papelão e não tem nada, e não teria criado o mundo com a possibilidade de existir
pessoas que permitem que outras pessoas durmam em pedaços de papelão e não
tenham nada.
Não entra na minha
cabeça, não dá para ser aceito pelo meu reduzido e miserável cérebro, não pode
ser alcançado pela minha parca inteligência um deus, ou a possibilidade de um
deus, que, sendo o criador bom e poderoso, tivesse a apresentar como sua
criação esse mundo em que vivo e onde encontro pessoas que dormem em pedaços de
papelão e que não têm nada. Se esse deus fosse todo bondade, ele não teria
criado pessoas com condições de por algum motivo se tornarem pessoas más. Se
esse deus fosse todo poderoso, ele obrigatoriamente teria poder para criar um
mundo onde as pessoas não tivessem propensão à maldade, à ganância, ao egoísmo,
à indiferença. Se esse deus fosse onisciente, ele saberia antes de dizer “Faça-se
a luz” que no futuro haveria pessoas que dormiriam em pedaços de papelão e
que não teriam nada.
Eu não entendo, eu não
entendo, eu não consigo entender como é que as pessoas conseguem ver outras
pessoas dormindo em pedaços de papelão e ainda assim acreditar em deus, dar
dinheiro para as igrejas e dizer que deus é poderoso e bom. Eu não entendo! Eu
não entendo! Eu não entendo!
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