17 de junho de 2020

É SÓ UM EXEMPLO


Estou voltando exatamente agora do supermercado. Hoje está chovendo e a temperatura é baixa, bastante baixa em comparação ao calor próximo dos 40 graus do último fim de semana. Pois bem, com chuva e com frio, deitado na calçada ao lado da padaria sobre um pedaço de papelão molhado, havia um rapaz de talvez 15 anos, vestindo shorts e camiseta e dormindo encolhido com as mãos entre as pernas e a cabeça coberta pelo boné. Do outro lado da rua, na calçada ao lado do supermercado, debaixo de uma marquise, havia o que talvez fosse uma família com um adulto, ou uma criança mais velha -  não deu para ter certeza porque estava com a cabeça e o corpo cobertos e no ponto mais escuro - e duas crianças pequenas, uma menina e um menino. Os três dormiam juntos, encolhidos e cobertos com pedaços de lençóis, também sobre pedaços de papelão molhado. O menino pequeno, por estar mais para o lado de fora da marquise, estava também provavelmente recebendo respingos da chuva.

Os quatro dormiam, um de um lado três do outro lado da rua, na calçada de uma avenida movimentada do Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa do Brasil do Futuro, a cidade das olimpíadas de 2016 do país que tem aparecido como exemplo de desenvolvimento nos quadros econômicos do mundo. Os quatro dormiam e além de, talvez, os sonhos, não têm nada. E eu sinto aquele nó forte no meu peito impotente e me grito alto e raivosamente para dentro do meu silêncio: E AINDA QUEREM ME CONVENCER DE QUE EXISTE UM DEUS DE BONDADE QUE CRIOU ESSE MUNDO!

Alguém dirá que eu poderia deixar de ser egoísta e, ao invés de amaldiçoar deus, ajudar essas pessoas. Eu responderia que não recebo salário há um ano e meio, moro em um cômodo único com banheiro e não tenho como abrigar quatro pessoas, e acrescentaria que, mesmo que tivesse condições, isso não diminuiria minha raiva porque sei que esses são quatro de uma quantidade muito maior de pessoas que dormem em papelões e que não têm nada. Poderiam insistir dizendo que eu poderia ajudar com doações a instituições de caridade e eu diria que isso também não resolve porque há instituições de caridade e há doações e ainda assim continua havendo pessoas que dormem em cima de papelões e não têm nada.

Outra pessoa diria que esse quadro e essas cenas são culpa do homem e não de deus. Discursos e discursos são feitos para provar que deus não tem culpa, não deseja e até sofre com essas aberrações ainda mais do que eu. E eu respondo que esses discursos não me convencem de forma nenhuma porque se existisse esse deus todo bondade, com todo poder e toda onisciência que afirmam que esse deus tem, ele não teria criado o mundo com a possibilidade de existir gente que dorme em pedaços de papelão e não tem nada, e não teria criado o mundo com a possibilidade de existir pessoas que permitem que outras pessoas durmam em pedaços de papelão e não tenham nada.

Não entra na minha cabeça, não dá para ser aceito pelo meu reduzido e miserável cérebro, não pode ser alcançado pela minha parca inteligência um deus, ou a possibilidade de um deus, que, sendo o criador bom e poderoso, tivesse a apresentar como sua criação esse mundo em que vivo e onde encontro pessoas que dormem em pedaços de papelão e que não têm nada. Se esse deus fosse todo bondade, ele não teria criado pessoas com condições de por algum motivo se tornarem pessoas más. Se esse deus fosse todo poderoso, ele obrigatoriamente teria poder para criar um mundo onde as pessoas não tivessem propensão à maldade, à ganância, ao egoísmo, à indiferença. Se esse deus fosse onisciente, ele saberia antes de dizer “Faça-se a luz” que no futuro haveria pessoas que dormiriam em pedaços de papelão e que não teriam nada.

Eu não entendo, eu não entendo, eu não consigo entender como é que as pessoas conseguem ver outras pessoas dormindo em pedaços de papelão e ainda assim acreditar em deus, dar dinheiro para as igrejas e dizer que deus é poderoso e bom. Eu não entendo! Eu não entendo! Eu não entendo!

Nenhum comentário: