Eu me via uma cabeça sobre pernas
enormes e aquelas pernas, e aquela cabeça não eram eu. Não sabia explicar isso
naquela época e pouco sei explicar agora, mas sei que sentia que aquele corpo
desengonçado era algo como minha prisão, era um lugar onde eu estava e de onde
não podia sair. Sabia que tinha muita influência sobre essa minha prisão, que
não definia conscientemente como prisão, é claro. Essa influência, se é que se
pode chamar assim, era o que me fazia precisar tomar banho e escovar os dentes
e era o que me fazia sentir fome ou dor, mas não sabia se era essa prisão que
me fazia sentir alegria e prazer. O fato era que estava presa a essa cabeça
Eu não gostava dessa prisão que
me fora imposta, olhava no espelho e sentia vontade de espancá-la, só não o
fazia porque sabia que iria doer e eu nunca gostei de dor, pensava como uma
injustiça eu presa nessa prisão feia e desengonçada e me sentia humilhada
quando era uma pequena coisinha sem graça sob o brilho dos cabelos vastos e do
lindo sorriso da minha prima, ou sob o olhar brilhante e os lábios vermelhos da
linda nissei que ia para a escola no mesmo horário que eu, ou ainda, um pouco
depois, sob a aparência tão agradável da menina chamada Inês para quem o menino
por quem eu chorava escrevia declarações de amor no quadro negro da minha sala.
Muitas
vezes tive aquela sensação de ser a prisioneira de um corpo que mais me tinha
do que era meu. Tive essa sensação quando espetei a axila direita em uma ponta
de madeira da cerca que pulamos, eu e meus primos, no sítio onde morava minha
avó. O corte foi feio e, como sempre fazia, meu pai não quis ouvir reclamações
e usou seu método curativo infalível: um bom banho de álcool na ferida. Aquilo
doeu tanto que eu queria ter podido sair nem que fosse um pouquinho de dentro
do corpo machucado. Quando fui passar pela cerca de arame farpado que meu pai
fez para proteger o milharal que ele plantou em toda a volta do barracão onde
morávamos, fiquei com a perna presa pelas farpas de arame que me rasgavam a
pele, tenho a cicatriz ainda hoje. Além de novo banho de álcool as feridas
demoraram a sarar e toda noite, durante várias semanas, fui obrigada a suportar
o emplasto que minha mãe fazia com fumo e urina. Era uma coisa feia e fedorenta
que, ela jurava, curaria minha perna. Eu não queria aquela perna!
Cada
ferimento, cada dor, cada olhada no espelho, insatisfeita com a imagem da
menina magrela, feia e desengonçada, sempre me fazia sentir estranha. Mas o
mais estranho de tudo era o que acontecia quando me deitava na grama do
campinho e ficava olhando o céu. Naqueles momentos não estava pensando nas
dores, na falta de beleza do corpo que me possuía, estava “enfiando” meu olhar
entre as nuvens, tentando fazer ideia de quão longe esse olhar poderia ir se os
olhos que olhavam por mim não fossem tão pobres e imperfeitos. Eu sentia que
poderia ir além e além. Que aquela abóbada azul não tinha barreira que um olhar
mais capaz não pudesse atravessar. Ficava me perguntando quantas coisas
existiriam para ver além de onde esses olhos viam. Fazia muito isso de
deitar-me na grama do campinho e olhar o céu. Enquanto o campinho esteve lá foi
o meu lugar preferido. Mesmo que os meninos estivessem jogando bola ali bem
perto, eu conseguia encontrar um canto mais afastado e ficar deitada “enfiando”
os olhos no céu. Um dia começaram a construir casas lá e não pude mais me
deitar na grama.
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