13 de junho de 2020

FALHA DE PROJETO


Eu me via uma cabeça sobre pernas enormes e aquelas pernas, e aquela cabeça não eram eu. Não sabia explicar isso naquela época e pouco sei explicar agora, mas sei que sentia que aquele corpo desengonçado era algo como minha prisão, era um lugar onde eu estava e de onde não podia sair. Sabia que tinha muita influência sobre essa minha prisão, que não definia conscientemente como prisão, é claro. Essa influência, se é que se pode chamar assim, era o que me fazia precisar tomar banho e escovar os dentes e era o que me fazia sentir fome ou dor, mas não sabia se era essa prisão que me fazia sentir alegria e prazer. O fato era que estava presa a essa cabeça

Eu não gostava dessa prisão que me fora imposta, olhava no espelho e sentia vontade de espancá-la, só não o fazia porque sabia que iria doer e eu nunca gostei de dor, pensava como uma injustiça eu presa nessa prisão feia e desengonçada e me sentia humilhada quando era uma pequena coisinha sem graça sob o brilho dos cabelos vastos e do lindo sorriso da minha prima, ou sob o olhar brilhante e os lábios vermelhos da linda nissei que ia para a escola no mesmo horário que eu, ou ainda, um pouco depois, sob a aparência tão agradável da menina chamada Inês para quem o menino por quem eu chorava escrevia declarações de amor no quadro negro da minha sala.

          Muitas vezes tive aquela sensação de ser a prisioneira de um corpo que mais me tinha do que era meu. Tive essa sensação quando espetei a axila direita em uma ponta de madeira da cerca que pulamos, eu e meus primos, no sítio onde morava minha avó. O corte foi feio e, como sempre fazia, meu pai não quis ouvir reclamações e usou seu método curativo infalível: um bom banho de álcool na ferida. Aquilo doeu tanto que eu queria ter podido sair nem que fosse um pouquinho de dentro do corpo machucado. Quando fui passar pela cerca de arame farpado que meu pai fez para proteger o milharal que ele plantou em toda a volta do barracão onde morávamos, fiquei com a perna presa pelas farpas de arame que me rasgavam a pele, tenho a cicatriz ainda hoje. Além de novo banho de álcool as feridas demoraram a sarar e toda noite, durante várias semanas, fui obrigada a suportar o emplasto que minha mãe fazia com fumo e urina. Era uma coisa feia e fedorenta que, ela jurava, curaria minha perna. Eu não queria aquela perna!

          Cada ferimento, cada dor, cada olhada no espelho, insatisfeita com a imagem da menina magrela, feia e desengonçada, sempre me fazia sentir estranha. Mas o mais estranho de tudo era o que acontecia quando me deitava na grama do campinho e ficava olhando o céu. Naqueles momentos não estava pensando nas dores, na falta de beleza do corpo que me possuía, estava “enfiando” meu olhar entre as nuvens, tentando fazer ideia de quão longe esse olhar poderia ir se os olhos que olhavam por mim não fossem tão pobres e imperfeitos. Eu sentia que poderia ir além e além. Que aquela abóbada azul não tinha barreira que um olhar mais capaz não pudesse atravessar. Ficava me perguntando quantas coisas existiriam para ver além de onde esses olhos viam. Fazia muito isso de deitar-me na grama do campinho e olhar o céu. Enquanto o campinho esteve lá foi o meu lugar preferido. Mesmo que os meninos estivessem jogando bola ali bem perto, eu conseguia encontrar um canto mais afastado e ficar deitada “enfiando” os olhos no céu. Um dia começaram a construir casas lá e não pude mais me deitar na grama.

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