Descartes dizia aceitar que o
mundo tivesse sido criado por deus, dizia aceitar que, se deus existisse, ele
seria garantia e suporte de todas as outras verdades. Mas, como saber se deus
existe ou não? Como provar a sua existência se apenas podia ter a certeza da
existência do cogito? Descartes apresentou em seus escritos três provas
da existência de deus. Vamos olhar cada uma delas:
Na primeira, chamada de prova
a priori, Descartes procura mostrar que, porque existe em nós a ideia de um
ser perfeito e infinito, daí resulta obrigatoriamente que esse ser perfeito tem
que existir uma vez que a existência seria ela mesma uma característica
constituinte desse ser perfeito, ou, em outras palavras, que a existência seria
parte integrante a priori e sine qua non do ser perfeito. Daí
que, para Descartes, se eu tenho em mim a ideia do ser perfeito e se a
existência é característica constituinte do ser perfeito, característica sem a
qual o ser não seria perfeito, então o ser perfeito existe de fato e
obrigatoriamente. E o ser perfeito é deus, portanto deus existe.
O argumento é bem convincente sem
dúvida, só que quando analiso a MINHA ideia de ser perfeito descubro que ela é
diferente da ideia de ser perfeito da maioria das outras pessoas, e se começo a
investigar a ideia de perfeição que as pessoas à minha volta têm, descubro que,
como acreditava Hume a respeito de todas as ideias, a ideia de perfeição também
é única e pessoal, ou seja, parece que cada pessoa tem uma ideia de perfeição
diferente, muito ou pouco, das demais pessoas. Disso posso concluir que a ideia
de perfeição que tenho não é confiável a ponto de ser nomeada como A IDEIA DE
PERFEIÇÃO única possível, então não posso confiar que minha ideia de perfeição
seja mesmo a ideia de perfeição e não apenas e simplesmente a ideia de algo que
EU acredito ser a perfeição. Com base nesse fato ou se aceitaria que existem
bilhões de seres perfeitos, um para cada ideia de perfeição que cada habitante
do planeta tem - o que acabaria com a unicidade que é outra característica
constituinte de deus de acordo com os que defendem sua existência - ou a ideia
da existência de deus provada dessa forma enfraquece consideravelmente.
Na segunda prova, chamada de prova
a posteriori , Descartes conclui que Deus existe pelo fato de a sua ideia
existir em nós, e diz que porque possuímos
a ideia de Deus como ser perfeito seremos levados a concluir que esse
ser realmente existe, afinal, diz ele, não poderíamos ter em nós a ideia de
perfeição sendo nós os seres imperfeitos que somos. Ele não aceita a
possibilidade de que o menos perfeito (nós) possa ser causa do mais perfeito (a
ideia de deus). Descartes conclui então que deve existir um ser perfeito que é
a causa dessa nossa ideia de perfeição. E esse ser perfeito só pode ser deus.
Pois bem, com base no que eu
disse anteriormente, não é confiável que nós tenhamos realmente a ideia de
perfeição uma vez que essa ideia varia tanto de pessoa para pessoa, em função
disso posso concluir que essa segunda prova só poderia ter possibilidade de
validade no caso de a primeira prova ter sido aceita. Como já afirmei que não
aceito a primeira prova e expliquei o porquê dessa minha não aceitação, a
segunda prova fica, então, sem efeito porque eu mesma - ser imperfeito - posso
ter colocado em mim a MINHA ideia de perfeição que pode não ser na verdade uma
ideia de perfeição condizente com algo que realmente fosse perfeito. Minha
ideia de perfeição, como procurei demonstrar acima, não é confiável, portanto,
não tem condições de provar nenhuma perfeição e, portanto, não tem como provar
também a existência de qualquer tipo de perfeição.
A terceira prova, chamada também
de prova a posteriori, é onde Descartes tenta demonstrar a existência de
Deus a partir do fato de que não podemos nos conservar, ou manter a vida e a
existência de nós mesmos. Diz ele que se nós não podemos garantir a nossa
própria existência, e no entanto existimos (pelo menos como cogito), é
certo que alguém nos terá garantido essa existência. E esse alguém só pode ser
deus.
Mas se só reconheço minha
existência como res cogito, ou seja, como coisa pensante, então não
posso reconhecer como existente meu dedão do pé, minhas mãos, meu coração ou
meu corpo como um todo. Além disso se só posso me reconhecer como res cogito
imagino que eu não tenha como saber o que é que constitui esse res cogito
que sou, qual é a matéria, qual é a substância que constitui o res cogito?
Não posso determinar isso, então, consequentemente, não posso mesmo, na
verdade, confirmar como realidade a existência do res cogito e
muito menos a existência de algo que o tenha provocado.
Não consigo evitar de pensar que
há uma forte dose de ironia nas provas da existência de deus de Descartes, da
mesma forma que sinto uma forte ironia na sua frase: “O bom senso é o que há
de mais bem distribuído no mundo, pois cada um pensa estar bem provido dele.”
Nessa frase fica claro que ele está afirmando a prepotência humana de se achar
suficientemente provido de bom senso quando logicamente não está, e para
comprovar isso basta que olhemos a nosso redor.
Parece-me que, impedido que foi
de negar deus, pela época, pela conjuntura em que viveu e até mesmo pela sua
própria criação, Descartes encontrou essas explicações claramente falsas para
ele, mas, ao mesmo tempo, providas de raciocínio facilmente aceitável pelas
instituições religiosas e, principalmente, pelo senso comum. Acho que ele pode
bem ter articulado essas “provas” com o fim de salvaguardar sua
integridade física e não correr o risco que correu seu contemporâneo Galileu
Galilei cuja trajetória Descartes acompanhou e cujo desfecho sabe-se que
influenciou grandemente seu comportamento, e não tem por que não acreditar que
deve ter influenciado também seu pensamento; ou ao menos a forma de expô-lo.
Enfim, para mim e na minha visão,
as provas da existência de deus de Descartes carecem de fundamento lógico
quando aplicamos a elas, inclusive, as conclusões de Descartes. E se aplico
minhas conclusões mesmas chego à prova de que minha própria existência, caso eu
me aceite como ser existente com base no Cogito Ergo Sum de Descartes,
pode ser usada como prova da não existência de deus.
Minha prova seria, portanto,
essa: Tenho em mim uma ideia de ser perfeito e a minha ideia de ser perfeito
seria um ser que por ser perfeito não criaria nada que fosse imperfeito. Se
aceitar a existência de deus terei que aceitar que fui criada por ele, mas sou
imperfeita e o ser perfeito do qual tenho a ideia não criaria nada imperfeito,
portanto, não criaria a mim. Daí que minha existência mesma é prova de que o
ser perfeito não existe e, se o ser perfeito é deus, então minha existência é
prova de que deus não existe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário