Deus então teria usado todo o seu
infinito poder para criar, não um, mas dois lugares somente para que o cristão
neles pudesse viver. Um dos lugares, mais simplezinho e menos acabado, assim
como se fosse uma pensãozinha barata onde a gente fica quando o dinheiro anda
curto e estamos só de passagem, seria a terra.
Esse lugar não é de muito luxo e
tem a desvantagem de que o cristão é obrigado a dividi-lo com todo o tipo de
gente sem mérito, como os ateus, os homossexuais e os macumbeiros; mas o lugar
provisório e imperfeito tem a vantagem de servir para que o cristão ganhe
pontos arrebanhando adeptos para a sua causa dentre essas almas perdidas com as
quais é obrigado a conviver. Isso porque ficou tacitamente combinado entre o
cristão e deus que quanto mais pessoas o cristão conseguir transformar em
cristãos maior será a sua chance - que já não é pequena - de ir para o outro
lugar que deus criou só pra ele.
E esse primeiro lugar - esse
alberguezinho modesto - também tem suas imensas vantagens, que podem ser consideradas
como itens para o conforto, ou razoável conforto, do cristão durante sua
estadia. Não está muito claro se esses confortos foram criados só para o
cristão, mas parece que sim, pelo menos vêm servindo como pontos bastante
fortes de apoio para ajudar o cristão a convencer mais pessoas a se tornarem
cristãs. Muitos deles inclusive - provando que tudo foi criado apenas para o
cristão - afirmam que esses confortos estariam em maior abundância, de forma
muito melhor arranjada e seriam de usufruto muito mais simples se todos os
seres humanos se tornassem cristãos; ou seja, os não cristãos são culpados
pelos males que atingem o cristão, afinal, as dificuldades e carências existem
por causa dos não cristãos; para o cristão só o melhor!
Os privilégios são basicamente
esses: nesse primeiro mundo o cristão é o superior dos superiores; ele é a
máxima criação e tem todos os animais e a natureza como pano de fundo, palco,
objetos de uso, propriedades e brindes amostra-grátis que a ele foram dados por
deus como se fossem um tipo de bônus ou aperitivo para seu maior conforto aqui
e para que ele possa ter uma ideia da maravilha do paraíso que o espera e não
tenha dúvidas de que é um privilegiado. Os outros (humanos ou não tanto) são
uma criação de menor valor, pelo menos até e se aceitarem se tornar cristãos;
esses inferiores podem usufruir dos privilégios da natureza com os cristãos mas
para eles nada disso é prêmio ou bônus, deles cada prazer será cobrado no
inferno com rios de suor, sangue e lágrimas que jorrarão pela eternidade caso
se atrevam a morrer sem virar cristãos.
Alguns cristãos, justiça seja
feita, se tornaram menos rigorosos e mais condescendentes e afirmam que na
verdade o inferno não existe; mas eles em geral não explicam como ficarão os
que, sem a existência do inferno, não terão para onde ir porque certamente não
poderão usufruir do paraíso que foi criado e está reservado apenas para o
cristão. Alguns deles parece que acreditam que, mesmo depois da morte, se não
tiver vivido uma vida de pecados, alguns não cristãos privilegiados terão a
chance - como na repescagem da classificação para a Copa do Mundo - de se
tornarem cristãos e entrarem no segundo e perfeito mundo. O cristão que defende
essa ideia não costuma sequer pensar na hipótese de alguém a quem essa
oportunidade póstuma seja dada negar-se a se tornar cristão, afinal,
obviamente, se o deus cristão ou o próprio Cristo em pessoa aparece e diz a
você que as portas do paraíso serão abertas à sua passagem caso você se torne
cristão, não há a mínima possibilidade de que você recuse, certo? Errado! Eu
recusaria.
O segundo lugar que deus criou e
“decorou” unicamente para o usufruto do cristão é o conhecidíssimo e
impossível de descrever Paraíso. Dante foi um que tentou descrever
adequadamente esse espaço de prazer e bem aventurança, mas Dante certamente não
conseguiu. Quem tem a curiosidade de ler a Divina Comédia percebe que dos três
livros o Inferno é uma delícia de leitura, bem estruturado, irônico,
melancólico, doce e até mesmo, apesar de todo o tempo que passou, atual; o
purgatório perde muito da força e o Paraíso é um verdadeiro inferno pelo qual
um apreciador de literatura passa ao insistir e avançar por suas páginas.
O inferno é fácil de imaginar,
nós o temos aqui; o paraíso não é possível porque dele o cristão tira a
humanidade que talvez o tornasse viável e, pela falta de com que comparar,
mesmo o não cristão tem muita dificuldade para imaginar uma possibilidade de
paraíso, ou de um mundo que realmente faria sentido como criação de um deus
onipotente e bom. Fica mais visível e claro para o não cristão que o Paraíso
com que o cristão o tenta parece mais com um inferno tedioso e sem graça.
Mesmo assim o cristão não tem
dúvidas: Deus, o ser supremamente, absurdamente e absolutamente perfeito e
poderoso, o ser absoluto a quem nada falta e que de nada precisa, deu-se ao
trabalho de criá-lo e de criar, só para ele e atendendo a todas as suas
necessidades, gostos e vontades, um lugar onde o deixará viver para sempre e
onde ficará ele mesmo, o deus supremo, feliz e satisfeito como um cachorro que
atendeu às ordens do dono, a apreciar a companhia do “super” cristão.
Não sei não, mas essa coisa toda está me passando a impressão de que na mente
do cristão ele é melhor do que deus.
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