19 de junho de 2020

INFÂNCIA DE ANTIGAMENTE


Eu não concordo com a ideia, que vejo em muitos textos e vídeos coloridos e musicais, de que a infância de antigamente era melhor e deixou saudades. Fui criança naqueles tempos antigos (bem antigos!) e não sinto nenhuma saudade. Na maior parte da minha infância eu não tomava água de torneira porque não tinha água encanada na maioria das casas, inclusive na minha. Tinha um poço no quintal e minha mãe tirava água com um balde preso por uma corda.

É verdade que na escola colocavam apelidos... e doía muito! Não era divertido pra ninguém ser chamado de burro, de cabeção, de banana pintada, de preto fedorento ou de "filho de desquitada".

Tive amigos que sofriam muito por serem negros, gagos, vesgos, mancos ou por morarem em favela. Vi mais de uma menina chorando no banheiro porque foi humilhada por ter algum "defeito grave"; eu chorei no banheiro por ser chamada de magrela, de banana pintada e de "pobre". Vi pessoas pararem de estudar porque, depois de tanta insistência, acabavam acreditando nos "coleguinhas" que as chamavam de burras. E se o menino era um pouco afeminado então? Virava saco de pancada de todo mundo e nenhum professor enxergava.

Levei surras de cinta e de chinelo e quando ia pra escola toda marcada tinha vários colegas com quem podia "comparar" as marcas; e tinha também, sempre, os "coleguinhas" que sabiam tornar as feridas ainda mais doloridas e as marcas mais profundas fazendo rodinhas para rir da gente gritando "apanhou da mamãe!", "apanhou da mamãe!" – essa era pior para os meninos. Bulling realmente não existia naquele tempo, essa palavra é bem moderna, mas o que ela nomeia existia sim, e muito!

Gostar de bola, de fubeca (bola de gude) ou de soltar pipa era terminantemente proibido para as meninas. Nunca me esqueço da pipa amarela em forma de estrela que meu tio fez pra mim e meu pai rasgou dizendo que "Isso não é brinquedo de menina".

Os meninos brincavam na rua, as meninas no quintal de casa, e se uma menina se atrevesse a brincar com os meninos ficava logo "mal falada". E para ficar mal falada não precisava muito, bastava um menino mais velho e mais sádico não ir com a sua cara.

Não achei divertido ouvir a mãe da vizinha que brincava comigo chamar a filha dizendo pra quem quisesse ouvir: "Seu pai já não falou pra você não brincar com essa menina?", essa menina era eu. Isso porque um menino maior achou divertido espalhar que eu tinha "feito besteira" com ele. O bairro inteiro passou a me tratar como puta; aos nove anos! Eu sabia menos sobre sexo do que sabem hoje as crianças com metade da idade que eu tinha. E casos como esse não eram tão raros naquele tempo.

Não, eu não tenho nenhuma saudade daquela infância!

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