20 de junho de 2020

RESPONDENDO AS PERGUNTAS DE BERTRAND RUSSELL


Na verdade não vou responder pergunta nenhuma. E não vou responder pela simples razão de que essas perguntas não têm respostas. São perguntas que a ciência e a filosofia tentam responder desde que existem, e que, inclusive, em certo sentido são responsáveis pela própria existência dessas duas maravilhosas criações humanas. Todas as religiões do planeta, ou quase todas, também desde a existência da primeira religião, pensam e pensaram ter respondido essas questões, mas as respostas dadas por cada uma das religiões em geral são válidas somente para os que são adeptos daquela religião, portanto, não são respostas realmente. O próprio B. Russell disse que “Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados”. Então, logicamente, não darei respostas verdadeiras, válidas e definitivas, nunca teria tal pretensão, vou apenas usar o meu “achômetro” e tentar dar as minhas possibilidades de resposta, que não posso nem sequer dizer que são definitivas para mim mesma uma vez que, como todo ser humano, estou sujeita a pensar de novo e a mudar de ideia. Vamos às perguntas.



1 - Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria?

A tentação primeira é dizer que sim, afinal, sentimos que aquilo que somos realmente, aquilo que em nós sente, não é apenas a nossa carne, então concluímos que tem que ser também e principalmente outra coisa, e chamamos “espírito” a essa outra coisa que acreditamos pressentir em nós. Além disso, devido a nossa necessidade de nos sentirmos especiais, temos muita dificuldade para imaginar que um cadáver possa ser de certa forma semelhante a um ferro de passar desplugado. Mas acontece que quando vejo uma pessoa muito idosa que já perdeu boa parte da noção de tempo e de espaço, quando vejo alguém com Alzheimer, quando sei da mudança que acontece com alguém que, por algum acidente, perdeu parte do cérebro, quando penso nos animais todos, e mesmo nas plantas, e na sem razão de me julgar melhor do que eles, e até quando penso em meu próprio sono e no que acontece durante essas horas em que deixo de ser eu, sinto muita dificuldade em aceitar como fato essa divisão em espírito e matéria. Pensando mais, pensando com mais cuidado, pensando, ou tentando pensar, em um todo que me cerca e não apenas em mim mesma, minha tendência é rejeitar essa teoria. Além disso, se penso profundamente em como me parece que seriam as coisas se realmente a vida fosse uma comunhão de espírito e matéria, concluo que o que vejo não se parece tanto assim com essa comunhão, portanto, acho mesmo que somos somente matéria e energia, e mais, como sei que a própria matéria é na verdade constituída de energia, então, aquilo que chamamos de espírito é apenas energia atuando na matéria; ou energia interagindo com energia. E quando digo energia não estou pensando em nenhum tipo de energia transcendental, extra mundo ou extra vida, estou pensando nessa energia cuja ação vemos o tempo todo em nossa vida; a mera, simples e cotidiana eletricidade, ou algo similar e tão mundano quanto.



2 - E, supondo-se que assim seja, que é espírito e que é matéria?

Bem, como já disse na resposta à primeira pergunta, não é dessa forma que vejo, mas talvez, dentro mesmo do meu conceito, eu possa falar em “aparência de constituição de espírito”, que seria algo do tipo “manifestação de energia” e em “aparência de constituição da matéria”, que seria algo como a manifestação da energia num micro quando vista de um ponto macro. Como colocar isso em outras palavras para que fique um pouco mais claro para mim mesma? Vejamos: já andei muito tempo (e acho que ainda ando), como se diz, “encasquetada” com a pergunta que não sei se alguém já fez com essas mesmas palavras mas que certamente alguém já fez antes: “De que matéria é feita a matéria?” Nas minhas tentativas de encontrar algum tipo de resposta para essa pergunta me deparei com palavras como “quark”, “férmion” e “glúon”, sendo que, dessa última me chamou a atenção a explicação de que ela é uma “partícula de massa nula”. Disso tudo, explicações e definições das quais não entendo um décimo, o que minha ignorante cabecinha concluiu é que a matéria é formada por algo que não é matéria e que, aparentemente, é apenas energia, ou nada; essa expressão “massa nula” me pareceu muito significativa. Eu e minha monumental ignorância ficamos com a impressão de que tudo é, no final das contas, um imenso nada; daí que aquele postulado tão “verdadeiro e inquestionável” de que “Do nada nada pode surgir” não me parece assim tão verdadeiro e inquestionável afinal. De qualquer forma, se não é possível determinar o que é realmente a matéria, por que não se pode ter como possível e até plausível a hipótese de que o que chamamos espírito não passa de uma manifestação da própria matéria? Essa visão, no meu parco entender, tem a vantagem de simplificar muito as coisas, afinal, em lugar de dois incógnitos ficamos com um único. E eu consegui, como os maiores “sábios”, não responder nada!



3 - Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de forças independentes?

          Acho que essa pergunta, pelo menos quanto ao meu “achômetro”, já foi respondida nas duas anteriores. Mas o resumo, de acordo com minha teoria, seria que o espírito está sim, sujeito à matéria, tão sujeito que ele é, em última análise, a própria matéria. Nós é que, em nosso desconhecimento e levados pela nossa impressão e por nossas crenças, separamos e nomeamos como diferentes o que na verdade é igual, ou chamamos de outra coisa o que é, na realidade, a mesma coisa.



4 - Possui o universo alguma unidade ou propósito?

          Unidade talvez, propósito, pelo menos no que diz respeito ao ser humano, não parece. O universo é incrivelmente, fantasticamente, fabulosamente grande e é também, tanto em se tratando de tudo o que contém e acontece em seu território de dimensões inimagináveis quanto em se tratando de sua história, um perfeito desconhecido. Diante dessa verdade tão óbvia, o ser humano conseguir se tornar cego a ponto de não perceber o quanto é insignificante e achar que todo esse absurdo e mistério existe apenas em função de sua própria existência é algo que, embora aconteça com uma incrível frequência principalmente dentro das instituições religiosas mas também individualmente, não dá para compreender. Se o universo possui uma unidade e um propósito, este muito provavelmente inclui o homem tanto quanto na construção de um edifício se inclui individualmente os microorganismos que porventura vivam naquela terra.



5 - Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade?

          Pelo que afirmam as religiões, pelo menos as três maiores, há um deus que criou o universo como um mero e medíocre pano de fundo para nele colocar a terra, que ideologicamente continua sendo seu centro, e nela fazer habitar o ápice da criação que são os homens, seres magnificamente superiores a toda e qualquer coisa exceto a esse deus; e todo o universo existe para conter a terra que existe para ser palco da luta entre deus e o diabo, ou entre o bem e o mal, que estão eternamente disputando a posse da valiosíssima alma do homem, alma essa que terá uma eterna recompensa se optar pelo lado certo dessa batalha e um castigo eterno se optar pelo inimigo do criador. Como se faz essa opção varia de grupo para grupo, vai desde uma vida inteira de renúncia à própria vida até a exterminação impiedosa dos que não são adeptos do mesmo estilo de demonstração de opção tomada. E inacreditavelmente quase ninguém consegue perceber o absurdo dessa visão. Daí que, para mim e meu achômetro, o universo não tem consciência e, portanto, não tem finalidade, pelo menos não no sentido que nós, seres humanos, damos a essa palavra, e se tiver uma finalidade nós, humanos, por mais oniprepotentes que sejamos, não teremos como saber e como ver a conclusão dessa finalidade porque simplesmente somos insignificantes demais para que estejamos incluídos nela.



6 - Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem?

          Não acho que tenhamos realmente amor pela ordem, acho que simplesmente gostamos de acreditar que somos assim porque seres que têm amor pela ordem nos parecem superiores aos que não têm sequer noção do que seja ordem e se existe algo de que gostamos é de nos sentirmos superiores. Mas, pelo que podemos observar, e pelo que podemos observar com os parcos recursos dos nossos cinco sentidos e durante o tempo ínfimo em que aqui estamos, há algumas coisas e algumas manifestações que podemos classificar como regulares e recorrentes e que por isso podemos chamar de leis; só não temos, e muito provavelmente não teremos nunca, como afirmar que essas “leis” são mesmo o que nos parecem; não temos como saber se são mesmo como as vemos ou se precisaríamos de muito mais capacidade de percepção para conhecermos o que realmente são; e, pela nossa pequenez e efemeridade, não temos como saber se as regularidades que observamos são mesmo duradouras ou, em termos de tempo e dimensão infinitos, apenas momentâneas.



7 - É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas?

          Olha só do que é capaz o Google! Procure lá, se você não se lembrar o que é o homem para Hamlet, e encontrará essa frase e as referências: “Que obra-prima é o homem!" ["What a piece of work is man!", l. 295]. Só a consciência da possibilidade desse ato de procurar, e encontrar, a resposta a uma pergunta usando um instrumento criado pela tecnologia, criado pelo homem, faz com que a gente simplesmente se sinta tentado a concordar entusiasticamente com Hamlet. Sem dúvida que o homem é um animal fantástico dependendo do ângulo e da distância em que se olha. Às vezes, olhado como indivíduo, o homem parece muito superior à sua espécie, para sentir isso basta olhar para alguns personagens cujas vidas nos despertam admiração e respeito, como Nelson Mandela e Albert Sabin; outras vezes, olhado como espécie, o homem parece muito superior a si mesmo como indivíduo, minha procura no Google é um exemplo de um desses momentos. Mas tudo isso, desde a fantástica maravilha do indivíduo superior à fantástica maravilha do avanço tecnológico, se olhado de um ponto de vista mais distanciado, muito mais distanciado, não seria apenas comparável a uma ação incompreensível de uma formiga no formigueiro ou a uma casa de João-de-barro? Claro que para nós é extremamente difícil ver as coisas dessa forma distanciada e certamente cada um de nós tem uma porção de argumentos válidos que contrariam essa visão ou essa forma de colocar as coisas, mas, por mais que nos pareça absurdo e até injusto, não será assim mesmo, ou até mais desdenhosamente, que seríamos vistos se alguém nos visse de uma distância maior do que a que podemos tomar? Respondi com uma pergunta, coisa que meus professores sempre disseram que não é correto, mas quando só o que tenho são perguntas e achômetros, o que mais posso fazer se não “achar que” e perguntar?



8 - Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis?

          A resposta à pergunta anterior me pareceu ser relativa no espaço, a resposta a essa pergunta me parece ser relativa no tempo. No momento presente e até mesmo dentro de um período razoavelmente longo de tempo – do ponto de vista humano -, o que parece é que sim, existe uma maneira nobre e existe uma maneira baixa de viver, para comprovar isso podemos pegar por exemplo Hitler e Chaplin. Vendo o filme “O grande ditador” qualquer pessoa razoável se encherá de admiração e respeito por esse cineasta que ousou denunciar via sátira um personagem que na época estava causando tantos horrores no mundo e que para muitos ainda era figura digna de respeito e admiração. Os dois personagens seriam, nesse contexto, os exemplos opostos; Chaplin exemplificaria uma vida nobre e Hitler, logicamente, exemplifica uma vida baixa. Mas - quando se pensa profundamente sempre se pode encontrar um “mas” - será que daqui a cinco ou dez mil anos ainda se saberá quem foram esses personagens? E estou colocando a pergunta em termos de uma extensão de tempo bastante grande porque esses homens que tomei como exemplo certamente sobrevivem no tempo, principalmente agora que temos a internet, muitíssimo mais do que as pessoas comuns. Mas e depois da extinção da raça humana, que importância terá a existência dessas duas pessoas? E olha que escolhi como exemplo duas figuras de destaque, se falar de mim mesma e de outras milhões de milhões de pessoas que vivem e viveram nesse planeta, qual a importância de nossa existência e de nossas vidas quando são passadas apenas umas poucas gerações? O que posso concluir de tudo isso - e vivo dessa forma - é que nesse tempo presente em que estou, pouco antes de eu deixar de ter qualquer importância para qualquer pessoa porque nem mesmo minha mãe e meu filho existirão para dar conta de uma ilusória importância da minha passagem, nesse ínfimo espaço de tempo minha vida pode sim, embora seja mesmo inútil, ser vivida de maneira nobre, ao menos da maneira mais nobre que eu puder. E por mais inútil que seja (e é!), numa visão macro de tempo, não vejo essa busca pela maneira nobre de se viver como um desperdício completo porque não é desperdício para mim.



9 - Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo?

          Agora corro o sério risco de transformar minha resposta em um texto babaca de auto ajuda ou de louvor vazio à existência e ao amor, mas o fato é que vejo como modo nobre de viver aquele modo que inclui como ideia e ação constituinte o respeito ao outro. Parece bem clichê, bem primário e bem bestinha, mas ver o outro como um ser que como eu carrega sobre seus ombros, literal e metaforicamente, o peso da própria impotência, acho que é a única maneira nobre de agir e de viver. O que vejo como necessário para uma vida nobre é a capacidade de olhar o outro como meu igual, é a solidariedade de constatar que estamos juntos no mesmo infortúnio. Não é o amor que me une ao outro, é a empatia, é o respeito, é a consciência da nossa mesma miséria; e saber e sentir isso vai fazer com que eu não possa e não consiga prejudicar, explorar, ferir, magoar, inferiorizar, discriminar, subjugar o outro; e quando falo no outro não estou me referindo apenas aos outros seres humanos que partilham o mesmo espaço e tempo comigo, estou me referindo também aos animais e às plantas. Por isso sou tremendamente e teimosamente avessa à tal cadeia alimentar, por isso essa ideia de uma vida só ser vida à custa de outras vidas me enoja, por isso a existência da cadeia alimentar é uma das maiores razões do meu ateísmo. O “Amai ao próximo como a ti mesmo” é preceito válido apenas dentro de uma idealização religiosa, cega, mentirosa e reducionista do ser humano. Posso passar por heroína me arriscando para salvar alguém em perigo, muitas pessoas fazem isso e é lindo, é tocante, é louvável, mas em situações de risco extremo o animal que somos grita mais alto e o instinto de sobrevivência nos obriga a correr; fora isso, no meu dia a dia, cuido da minha vida e do meu bem estar - meu e dos que estão mais ligados a mim -; faço, com toda a boa vontade do mundo, doações de alimentos, roupas, trabalho e dinheiro dentro das minhas posses; e por mais nobre que isso possa parecer a verdade é que o termo “dentro das minhas posses” significa que nunca dou ao outro tanto quanto dou a mim mesma e aos que me são caros e que de mim dependem, por isso sou humana. Estou certa de que cada um de nós, se olhar de verdade para si mesmo, excetuando um filho ou alguém muito próximo, verá que na verdade não é capaz de amar ao próximo como a si mesmo; muito menos ao próximo que nem humano é. Por isso prefiro trocar o “amai” pelo respeito, é mais viável e tem a possibilidade de ser mais abrangente.



10 - Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte?

          Acho que já respondi essa pergunta lá em cima, sou em um determinado e mínimo espaço e tempo, se me afasto dessas referências tudo que sou se relativiza, perde importância, desaparece; mas nesse espaço e nesse tempo sou, e se sou minha existência e meu bem estar vão depender de eu agir da melhor maneira que posso, por mais insignificante que eu seja e que esse lugar e tempo por mim ocupado sejam. Ser bom é, em última análise, um ato de profundo egoísmo. Mas o bem é a forma como cada um vê as coisas, e esse relativismo é um dos grandes responsáveis pelos horrores e pelas aberrações presentes no mundo e na história; somos máquinas biológicas passíveis de sérios, graves e variados defeitos de fabricação, o bem para um pode ser algo que destrói muitos outros, como exemplo podemos voltar a Hitler, que considerava um bem “livrar o mundo” da existências dos “inferiores”. Pessoalmente vejo vantagem em procurar o bem e vejo que meu conceito de bem não é prejudicial, ou pelo menos não parece ser, aos outros que não são eu; essa (quase) certeza me faz acreditar que vale a pena procurar o bem tanto nos meus atos quanto nas minhas convicções. O fato de acreditar que realmente o universo, ou pelo menos a vida como a conheço, se encaminha sim, inexoravelmente, para a morte não muda essa minha postura e convicção.



11 - Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura?

          Novamente tenho que apelar para o relativismo. Quando pesquiso o conceito de homem na visão de Hamlet usando o Google, vejo que muito conhecimento, que pode ser chamado de sabedoria pela minha ignorância imensa, está por detrás desse meu apertar de tecla; quando leio o que escreveram muitos filósofos e muitos cientistas, vejo tal nível de sabedoria que chego a, meio brincando meio sério, pensar que essas pessoas não pertencem à raça humana; uma pessoa, por exemplo, como Einstein, parece por vezes aos seres comuns como eu, ser na verdade um extraterrestre de cultura e inteligência muito superior que, por alguma razão desconhecida, veio viver entre nós; e eu não sou a primeira pessoa que diz isso. Porém, quando começamos a relacionar as perguntas que não podemos responder e quando, numa abstração ainda maior, pensamos na possibilidade da existência de perguntas que não podemos sequer formular, o que acontece é que a sabedoria fica parecendo uma fantasia de conto infantil. Não sei se chamaria isso de loucura, acho que se assemelha mais a fantasia mesmo; acreditamos que sabemos, ou melhor, sentimos que alguns poucos de nós sabem tanto, e nos espantamos e nos maravilhamos com isso, mas se tentarmos “pisar” no que talvez seja a realidade, o que chamamos sabedoria se torna tão inexistente e inconsistente que somos tentados a rir de nós mesmos; e é isso o que, seguramente, muitos sábios fazem.

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