(De quando eu ainda tinha esperança)
Quem não está vivendo em uma bolha sabe que, atualmente, para que uma
pessoa seja tachada como “esquerdopata”, “esquerdista” ou “comunista”, basta
que diga uma palavra em defesa de alguma minoria ou manifeste apoio a algum dos
Direitos Humanos. Sou uma dessas pessoas a quem adoram mandar para Cuba (sem
pagar minha passagem e estadia) e cujos argumentos frequentemente respondem com
versões mais ou menos elaboradas do “E o PT?”, argumento único dos que enxergam
tudo vermelho. Então, por estar bastante acostumada com esse tipo de
comportamento – ou “modus operandi” - quando vejo um texto que começa com “Entendam
esquerdistas!” não tenho esperança de que o que virá a seguir seja digno de
atenção. Mas, como ainda não desisti de tentar colocar alguma racionalidade na
mente das pessoas que compraram o discurso dos manipuladores prestes a tomar o
poder, tento ler e responder alguns. Afinal, manter a esperança é o que a gente
faz enquanto a lama não sobe acima do nariz.
Então eu li isso:
“Data vênia, totalmente inconstitucional essa
lei de Cotas, Sra Presidenta! E onde fica o princípio Constitucional da
isonomia? Cérebros de negros e brancos são iguais, basta estudar, e prova disso
é Joaquim Barbosa! Se é para favorecer alguém, façam da maneira correta, usem
de exemplo o sistema de ingresso em Universidades Públicas Norte Americanas,
onde 100% das vagas são destinadas a quem não pode pagar, independente da raça!” ISSO NÃO É RACISMO”
Sou muito ignorante! Sei que já disse isso várias vezes, mas tenho sempre
que reforçar para evitar que me acusem de querer aparentar uma cultura ou
“capacidade intelectual” que não tenho. Então, como não sou expert em leis e
nem mesmo na Constituição, passei para o outro ponto e, embora concorde
totalmente que “Cérebros de negros e brancos são iguais”, o que vem a
seguir acendeu meu sinal de alerta: “basta estudar”? esse discurso que
apela para a meritocracia é um discurso MENTIROSO porque as condições dos
negros dificultam seu acesso à educação de qualidade. Para comprovar isso basta
ver as estatísticas: Qual a porcentagem de negros em todos e quaisquer lugares
onde estão as pessoas de maior poder aquisitivo e melhor posição social? Qual a
porcentagem de negros em todos e quaisquer lugares onde estão as pessoas de
menor poder aquisitivo e posição social mais subalterna e desvalorizada?
Comparando os números, qualquer pessoa poderá constatar que não, não é verdade
que “basta estudar”! Não adianta citar uma exceção como se fosse a regra
quando quem diz isso, se tiver um pouquinho só de capacidade cognitiva, sabe
muito bem que terá dificuldade para encontrar muitos outros exemplos além do
Joaquim Barbosa. Por que são tão poucos os negros em posições relevantes como
Joaquim Barbosa? Será porque o cérebro dos negros e dos brancos é diferente ou
porque os negros têm menos oportunidades? Como o próprio autor do texto me
poupou de ter que argumentar em favor da igualdade de negros e brancos quanto à
capacidade intelectual, sobrou a segunda possibilidade.
Na minha visão, me
pareceu que já tinha argumento suficiente para saber que o texto continha erro
(ou no mínimo interpretação errada) de argumentação, mas como a minha já
declarada ignorância não me impede de pensar e de pesquisar, resolvi analisar o
argumento que cita a Constituição. Antes de qualquer coisa, a palavra
“isonomia” me fez pensar naquela tirinha com dois quadrinhos que foi muito
divulgada nas redes sociais e que mostra três pessoas diante de um muro,
tentando ver um jogo de futebol que acontece do outro lado. Há três pessoas e
três caixotes, no primeiro quadrinho cada uma das pessoas fica com um caixote
para conseguir melhor visão acima do muro. Acontece que as três pessoas têm
alturas diferentes e com um caixote a mais alta tem uma visão excelente, a segunda
em altura mal consegue ver e a terceira fica com os olhos abaixo do muro e,
portanto, não vê nada. A legenda desse quadrilho é “Igualdade”. No segundo
quadrinho a pessoa mais alta está sem nenhum caixote, a segunda em altura está
sobre um caixote e a menor sobre dois, nessa distribuição as três pessoas
atingem a mesma altura e estão vendo o jogo igualmente. A legenda agora é
“justiça”. Acho que não preciso dizer o que me fez pensar nesse quadrinho ao
ler o termo “princípio Constitucional da isonomia” usado como argumento
no texto do cidadão que não parece gostar muito de “esquerdistas”. Mas fui
pesquisar e encontrei em uma página voltada para o estudo de questões de
direito para candidatos a concursos que “O princípio da isonomia, também
conhecido como princípio da igualdade, representa o símbolo da democracia, pois
indica um tratamento justo para os cidadãos.” E o texto continuava
explicando que esse princípio constitucional garante tratamento igual a todos
os cidadãos e não podem ser criadas leis que o violem. Até aí fica parecendo
que o autor do texto tem razão quando alega inconstitucionalidade da lei que instituiu
as cotas raciais. Mas eu não tenho preguiça de ler, então continuei a leitura
e, mais abaixo, encontrei a informação de que a igualdade, de acordo com a
Constituição Federal, possui duas vertentes e uma delas, a Igualdade Material,
trata exatamente do que foi ilustrado na tirinha dos três caixotes! Ou seja,
informava que quando as situações são iguais, deve ser dado um tratamento
igual, mas quando as situações são diferentes é importante que haja um
tratamento diferenciado. Então, senhor “cidadão de bem não racista que não
gosta de esquerdistas”, a presidenta não violou a constituição no caso das
cotas raciais!
Quanto aos EUA ter “100% das vagas são
destinadas a quem não pode pagar”, não vi confirmação disso em nenhum lugar que
informa sobre como o americano entra na faculdade. Li algumas matérias que
tratam do assunto e me pareceu que há mais do que essa simplificação rasa no
sistema de admissão das universidades americanas, coisa aliás, que já dá para
perceber por alguns filmes que tratam do tema direta ou indiretamente.
Inclusive, pelo que vi, o nível das escolas públicas americanas varia de acordo
com a localização, daí que nos bairros mais pobres as escolas têm nível mais baixo,
e como as notas do ensino médio são critério para entrar na universidade, fica
meio que explícito que lá também entra com mais facilidade quem “mora melhor”.
No final das contas, não me parece importar muito para quem mora e estuda aqui,
saber como funciona lá e copiar o sistema de outro país com outra realidade.
Esse seria tema para estudos muito mais aprofundados e discussões muito mais
elaboradas e fundamentadas do que um parágrafo escrito para dizer que não gosta
de quem defende algo que foi visto como “coisa de esquerdista.
E logo depois do
parágrafo todo errado, o cidadão sem preconceito escreveu (ou copiou) isso:
“Negros pobres são sim diferentes de brancos
pobres. O negro nasce com quase três séculos de racismo, exclusão e de uma
história de escravidão. O negro nasce sabendo o que é o tapa na cara da
polícia. O negro nasce sabendo que se ele estiver andando à noite na rua, ele
está tendo atitude suspeita. Essa é a diferença. E vale lembrar que brancos
pobres que estudaram em escolas públicas têm cotas nas universidades, e direito
a ProUni. ISSO É RACISMO!”
Quando essa pessoa pegou
fatos explicados e embasados e chamou de racismo, o que pensei foi “De onde ele
tirou esse absurdo?” Desde quando relatar a realidade em que vive uma parte
significativa da população do país é racismo e o raciocínio para aí em lugar de
ele perceber que é justamente por isso que as cotas fazem sentido? O contrário
de racismo então, na cabeça desse “cidadãos de bem” seria ficar com “peninha”,
esquecer rapidinho, calar e continuar dizendo que não diferencia as pessoas
pela cor da pele? Não ser racista é mentir e apagar fatos? Sou a favor das
cotas e sei que o texto diz a verdade e que denúncia de racismo não é racismo,
mas ignorar fatos pode ser sim! E é fato, é realidade que pessoas negras sofrem
racismo e que esse racismo as impede de ir para as universidades! O negro sabe
de tudo isso porque é assim que o branco sempre fez questão de
"ensinar" a ele desde sempre: “Tem lugar que não é pra você!”. Depois
o branco, que sempre estudou de graça em faculdade pública vem dizer que é contra
as cotas reforçando de forma não explícita que o negro não deve ter direito de
entrar lá mas que na escola pública, onde o ensino é ruim, aí sim, é onde o
negro tem que estudar. E ficar eternamente esperando que a qualidade desse
ensino melhore para, só então e talvez, conseguir o direito que deveria ser de
todos. E pra passar atestado de não racista, o cidadão de bem que não gosta de
esquerdista cita sempre a exceção, negando a regra. Desculpe, mas acho isso
sacanagem.
Escola pública é onde o
negro tem que estudar (porque é ruim). Universidade pública é para o branco
(porque é boa). E o branco elitista cita as exceções como se isso provasse a “validade”
e a “justiça” da meritocracia quando, por falta de raciocínio ou por maldade,
parece não perceber que seu discurso só serve para manter os negros nas escolas
públicas e impedir que os negros tenham acesso à universidade. Ele parece
esquecer que isso está errado e que as duas são públicas.
Olha meus cabelos
brancos e imagina há quanto tempo ouço essa conversa (muito verdadeira, por
sinal) de que temos que melhorar a educação pública. O sistema de cotas é o
ideal? não, claro que não! O ideal é que as oportunidades fossem mesmo iguais e
que ninguém precisasse sequer pensar nessa coisa de cotas. Mas a realidade não
é essa e a possibilidade da solução está cada vez mais longe. Desde que ouvi
pela primeira vez que "Temos que melhorar a educação" ela só tem
piorado. Por isso pergunto aos que são contra as cotas: Quanto tempo vocês
querem que os negros esperem?
O Brasil é um país
extremamente racista. E na minha visão essa vociferação toda contra o sistema
de cotas é uma demonstração de racismo, mas como sempre um racismo disfarçado,
nesse caso travestido de preocupação social. Enquanto os brancos tinham a
universidade pública só para eles, não falavam tanto que "tem que melhorar
a educação para mandar os negros pra lá".
Entre os pobres, a
imensa maioria é negra, e mesmo entre os mais pobres os brancos têm mais
oportunidades do que os negros. Vivemos em um país extremamente racista que faz
de conta que não é racista.
É fato que nem todo
branco nasce rico, eu sou branca e embora não seja rica agora, nasci muito
pobre mesmo, morei em barracão de madeira, na casa dos meus pais só foi ter
geladeira quando eu já não morava lá, estudei em escola de periferia "no
cu do mundo" mas na escola em que estudava e no bairro pobre em que eu
morava havia muitos negros e eles sofriam bem mais do que eu. Eu vi isso! Mesmo
sendo quase tão pobre quanto eles eu estava, aos olhos de todos os que nos
olhavam "um grau acima" por causa da cor da minha pele. Sim, nem todo
branco é vilão ou do mal, mas muitos brancos simplesmente não sabem o que é ser
negro. Eu não sei por experiência, mas vi e vejo de perto.
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