14 de junho de 2020

RESPONDENDO UM “CIDADÃO DE BEM” SOBRE COTAS


(De quando eu ainda tinha esperança)



Quem não está vivendo em uma bolha sabe que, atualmente, para que uma pessoa seja tachada como “esquerdopata”, “esquerdista” ou “comunista”, basta que diga uma palavra em defesa de alguma minoria ou manifeste apoio a algum dos Direitos Humanos. Sou uma dessas pessoas a quem adoram mandar para Cuba (sem pagar minha passagem e estadia) e cujos argumentos frequentemente respondem com versões mais ou menos elaboradas do “E o PT?”, argumento único dos que enxergam tudo vermelho. Então, por estar bastante acostumada com esse tipo de comportamento – ou “modus operandi” - quando vejo um texto que começa com “Entendam esquerdistas!” não tenho esperança de que o que virá a seguir seja digno de atenção. Mas, como ainda não desisti de tentar colocar alguma racionalidade na mente das pessoas que compraram o discurso dos manipuladores prestes a tomar o poder, tento ler e responder alguns. Afinal, manter a esperança é o que a gente faz enquanto a lama não sobe acima do nariz.

Então eu li isso:



“Data vênia, totalmente inconstitucional essa lei de Cotas, Sra Presidenta! E onde fica o princípio Constitucional da isonomia? Cérebros de negros e brancos são iguais, basta estudar, e prova disso é Joaquim Barbosa! Se é para favorecer alguém, façam da maneira correta, usem de exemplo o sistema de ingresso em Universidades Públicas Norte Americanas, onde 100% das vagas são destinadas a quem não pode pagar, independente da raça! ISSO NÃO É RACISMO



Sou muito ignorante! Sei que já disse isso várias vezes, mas tenho sempre que reforçar para evitar que me acusem de querer aparentar uma cultura ou “capacidade intelectual” que não tenho. Então, como não sou expert em leis e nem mesmo na Constituição, passei para o outro ponto e, embora concorde totalmente que “Cérebros de negros e brancos são iguais”, o que vem a seguir acendeu meu sinal de alerta: “basta estudar”? esse discurso que apela para a meritocracia é um discurso MENTIROSO porque as condições dos negros dificultam seu acesso à educação de qualidade. Para comprovar isso basta ver as estatísticas: Qual a porcentagem de negros em todos e quaisquer lugares onde estão as pessoas de maior poder aquisitivo e melhor posição social? Qual a porcentagem de negros em todos e quaisquer lugares onde estão as pessoas de menor poder aquisitivo e posição social mais subalterna e desvalorizada? Comparando os números, qualquer pessoa poderá constatar que não, não é verdade que “basta estudar”! Não adianta citar uma exceção como se fosse a regra quando quem diz isso, se tiver um pouquinho só de capacidade cognitiva, sabe muito bem que terá dificuldade para encontrar muitos outros exemplos além do Joaquim Barbosa. Por que são tão poucos os negros em posições relevantes como Joaquim Barbosa? Será porque o cérebro dos negros e dos brancos é diferente ou porque os negros têm menos oportunidades? Como o próprio autor do texto me poupou de ter que argumentar em favor da igualdade de negros e brancos quanto à capacidade intelectual, sobrou a segunda possibilidade.

Na minha visão, me pareceu que já tinha argumento suficiente para saber que o texto continha erro (ou no mínimo interpretação errada) de argumentação, mas como a minha já declarada ignorância não me impede de pensar e de pesquisar, resolvi analisar o argumento que cita a Constituição. Antes de qualquer coisa, a palavra “isonomia” me fez pensar naquela tirinha com dois quadrinhos que foi muito divulgada nas redes sociais e que mostra três pessoas diante de um muro, tentando ver um jogo de futebol que acontece do outro lado. Há três pessoas e três caixotes, no primeiro quadrinho cada uma das pessoas fica com um caixote para conseguir melhor visão acima do muro. Acontece que as três pessoas têm alturas diferentes e com um caixote a mais alta tem uma visão excelente, a segunda em altura mal consegue ver e a terceira fica com os olhos abaixo do muro e, portanto, não vê nada. A legenda desse quadrilho é “Igualdade”. No segundo quadrinho a pessoa mais alta está sem nenhum caixote, a segunda em altura está sobre um caixote e a menor sobre dois, nessa distribuição as três pessoas atingem a mesma altura e estão vendo o jogo igualmente. A legenda agora é “justiça”. Acho que não preciso dizer o que me fez pensar nesse quadrinho ao ler o termo “princípio Constitucional da isonomia” usado como argumento no texto do cidadão que não parece gostar muito de “esquerdistas”. Mas fui pesquisar e encontrei em uma página voltada para o estudo de questões de direito para candidatos a concursos que “O princípio da isonomia, também conhecido como princípio da igualdade, representa o símbolo da democracia, pois indica um tratamento justo para os cidadãos.” E o texto continuava explicando que esse princípio constitucional garante tratamento igual a todos os cidadãos e não podem ser criadas leis que o violem. Até aí fica parecendo que o autor do texto tem razão quando alega inconstitucionalidade da lei que instituiu as cotas raciais. Mas eu não tenho preguiça de ler, então continuei a leitura e, mais abaixo, encontrei a informação de que a igualdade, de acordo com a Constituição Federal, possui duas vertentes e uma delas, a Igualdade Material, trata exatamente do que foi ilustrado na tirinha dos três caixotes! Ou seja, informava que quando as situações são iguais, deve ser dado um tratamento igual, mas quando as situações são diferentes é importante que haja um tratamento diferenciado. Então, senhor “cidadão de bem não racista que não gosta de esquerdistas”, a presidenta não violou a constituição no caso das cotas raciais!

          Quanto aos EUA ter “100% das vagas são destinadas a quem não pode pagar”, não vi confirmação disso em nenhum lugar que informa sobre como o americano entra na faculdade. Li algumas matérias que tratam do assunto e me pareceu que há mais do que essa simplificação rasa no sistema de admissão das universidades americanas, coisa aliás, que já dá para perceber por alguns filmes que tratam do tema direta ou indiretamente. Inclusive, pelo que vi, o nível das escolas públicas americanas varia de acordo com a localização, daí que nos bairros mais pobres as escolas têm nível mais baixo, e como as notas do ensino médio são critério para entrar na universidade, fica meio que explícito que lá também entra com mais facilidade quem “mora melhor”. No final das contas, não me parece importar muito para quem mora e estuda aqui, saber como funciona lá e copiar o sistema de outro país com outra realidade. Esse seria tema para estudos muito mais aprofundados e discussões muito mais elaboradas e fundamentadas do que um parágrafo escrito para dizer que não gosta de quem defende algo que foi visto como “coisa de esquerdista.

E logo depois do parágrafo todo errado, o cidadão sem preconceito escreveu (ou copiou) isso:



Negros pobres são sim diferentes de brancos pobres. O negro nasce com quase três séculos de racismo, exclusão e de uma história de escravidão. O negro nasce sabendo o que é o tapa na cara da polícia. O negro nasce sabendo que se ele estiver andando à noite na rua, ele está tendo atitude suspeita. Essa é a diferença. E vale lembrar que brancos pobres que estudaram em escolas públicas têm cotas nas universidades, e direito a ProUni. ISSO É RACISMO!”



Quando essa pessoa pegou fatos explicados e embasados e chamou de racismo, o que pensei foi “De onde ele tirou esse absurdo?” Desde quando relatar a realidade em que vive uma parte significativa da população do país é racismo e o raciocínio para aí em lugar de ele perceber que é justamente por isso que as cotas fazem sentido? O contrário de racismo então, na cabeça desse “cidadãos de bem” seria ficar com “peninha”, esquecer rapidinho, calar e continuar dizendo que não diferencia as pessoas pela cor da pele? Não ser racista é mentir e apagar fatos? Sou a favor das cotas e sei que o texto diz a verdade e que denúncia de racismo não é racismo, mas ignorar fatos pode ser sim! E é fato, é realidade que pessoas negras sofrem racismo e que esse racismo as impede de ir para as universidades! O negro sabe de tudo isso porque é assim que o branco sempre fez questão de "ensinar" a ele desde sempre: “Tem lugar que não é pra você!”. Depois o branco, que sempre estudou de graça em faculdade pública vem dizer que é contra as cotas reforçando de forma não explícita que o negro não deve ter direito de entrar lá mas que na escola pública, onde o ensino é ruim, aí sim, é onde o negro tem que estudar. E ficar eternamente esperando que a qualidade desse ensino melhore para, só então e talvez, conseguir o direito que deveria ser de todos. E pra passar atestado de não racista, o cidadão de bem que não gosta de esquerdista cita sempre a exceção, negando a regra. Desculpe, mas acho isso sacanagem.

Escola pública é onde o negro tem que estudar (porque é ruim). Universidade pública é para o branco (porque é boa). E o branco elitista cita as exceções como se isso provasse a “validade” e a “justiça” da meritocracia quando, por falta de raciocínio ou por maldade, parece não perceber que seu discurso só serve para manter os negros nas escolas públicas e impedir que os negros tenham acesso à universidade. Ele parece esquecer que isso está errado e que as duas são públicas.

Olha meus cabelos brancos e imagina há quanto tempo ouço essa conversa (muito verdadeira, por sinal) de que temos que melhorar a educação pública. O sistema de cotas é o ideal? não, claro que não! O ideal é que as oportunidades fossem mesmo iguais e que ninguém precisasse sequer pensar nessa coisa de cotas. Mas a realidade não é essa e a possibilidade da solução está cada vez mais longe. Desde que ouvi pela primeira vez que "Temos que melhorar a educação" ela só tem piorado. Por isso pergunto aos que são contra as cotas: Quanto tempo vocês querem que os negros esperem?

O Brasil é um país extremamente racista. E na minha visão essa vociferação toda contra o sistema de cotas é uma demonstração de racismo, mas como sempre um racismo disfarçado, nesse caso travestido de preocupação social. Enquanto os brancos tinham a universidade pública só para eles, não falavam tanto que "tem que melhorar a educação para mandar os negros pra lá".

Entre os pobres, a imensa maioria é negra, e mesmo entre os mais pobres os brancos têm mais oportunidades do que os negros. Vivemos em um país extremamente racista que faz de conta que não é racista.

É fato que nem todo branco nasce rico, eu sou branca e embora não seja rica agora, nasci muito pobre mesmo, morei em barracão de madeira, na casa dos meus pais só foi ter geladeira quando eu já não morava lá, estudei em escola de periferia "no cu do mundo" mas na escola em que estudava e no bairro pobre em que eu morava havia muitos negros e eles sofriam bem mais do que eu. Eu vi isso! Mesmo sendo quase tão pobre quanto eles eu estava, aos olhos de todos os que nos olhavam "um grau acima" por causa da cor da minha pele. Sim, nem todo branco é vilão ou do mal, mas muitos brancos simplesmente não sabem o que é ser negro. Eu não sei por experiência, mas vi e vejo de perto.

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