Sou uma professora
velha, já dei aulas em muitas escolas.
Uma vez dei aulas em
uma escola onde havia dois computadores, um deles ficava com a dona da escola e
o outro com a mulher que a administrava, não me lembro se era chamada de
diretora ou gerente. Nessa época eu não tinha computador, não sabia nem mexer o
mouse e lojas de informática eram raras e fascinantes: coisa de gente rica.
Uma vez dei aulas em
uma escola onde havia uma sala de informática com uns poucos computadores. Só o
dono da escola entrava lá com os alunos. O que ele lecionava era uma disciplina
à parte, era o diferencial vendido aos pais: Aquela escola tinha aula de
informática!
Uma vez dei aulas em
uma escola que tinha uma grande sala de informática. A sala era bonita, tinha
cortinas pesadas e enormes janelões envidraçados que davam para um belo jardim.
Não havia aula de informática ministrada pela dona da escola e professores não
levavam seus alunos. Havia uma pessoa (um especialista em informática) que
trabalhava apenas naquela sala e todos os alunos podiam ir até lá, fora do
horário das aulas, para fazer pesquisas, trabalhos ou simplesmente aprender por
conta própria, como no meu tempo de estudante a gente fazia com os livros nas
bibliotecas. A diferença é que, ao contrário dos livros, os computadores não
podiam ser levados para casa como empréstimo por duas semanas.
Uma vez dei aulas em
uma escola onde tinha uma sala de informática recém montada pelo governo do
Estado e onde alguns poucos professores mais ousados e mais “antenados” levavam
seus alunos para dar uma aula diferente. Pensei em fazer o mesmo (eu já tinha
computador em casa e já sabia mexer com Word, Excel e Power point), cheguei a
planejar a aula diferente que daria, mas antes que o fizesse tivemos uma
reunião extraordinária na qual a diretora comunicou que um mouse havia sido
roubado. Nada foi dito, mas ficou subentendido que os professores “antenados”
eram incompetentes para, ao mesmo tempo, dar a aula diferente, cuidar dos seus
alunos e evitar roubos. Não dei a minha aula diferente planejada.
Várias escolas onde dei
aulas tinham gravadores enormes que os professores podiam levar para a sala de
aula e tocar para os alunos uma música, ou uma aula que tinham gravada, em fita
cassete, que era uma espécie de caixinha retangular com dois buraquinhos na
espessura de uma caneta Bic onde se podia gravar sons. Quem mais usava esses
aparelhos era sempre o professor de inglês, eu usei bastante uma vez que também
dei aulas de inglês. O problema com aqueles aparelhos era que nem sempre era só
plugar na tomada e apertar o play. Muitas vezes ele não funcionava, muitas
vezes a tomada daquela sala não funcionava, muitas vezes o professor da sala ao
lado reclamava do barulho, muitas vezes a gente que estava na sala ao lado mal
conseguia dar aula por causa do barulho.
Uma vez dei aulas em
uma escola onde havia um móvel bem grande com rodinhas, uma espécie de armário
transportável, onde tinha uma televisão e um vídeo cassete. A gente empurrava
aquele móvel até a sala de aula e podia passar filme ou tocar música para os
alunos. Na escola onde usei isso havia dois, um por andar. O problema de nem
sempre funcionar, o problema de a tomada não funcionar e o problema de o
professor da sala ao lado reclamar do barulho, esses continuaram existindo, mas
agora a gente tinha imagem!
Talvez para acabar com
esses problemas e dar ainda mais recursos aos professores foram criadas as
salas de vídeo e então toda escola passou a ter uma sala de informática e uma
sala de vídeo. Essas salas se tornaram muito disputadas, com um calendário em
forma de caderno - que às vezes ficava a cargo do próprio diretor - ou em forma
de cartaz afixado na porta da respectiva sala ou na sala dos professores. Todos
nós temos que correr para reservar nosso horário antes que algum outro
professor mais entusiasmado “peque tudo para si”.
Um detalhe muito
importante do qual não falei até agora é o “incentivo externo”. Toda escola,
durante todas essas décadas, sempre teve alguns ou muitos momentos nos quais
reuniam todos os professores para que alguém explicasse o quanto é importante
que as novas tecnologias sejam usadas como recurso pedagógico. Já fizeram isso
de tantas maneiras que não tenho certeza de me lembrar de todas elas: Muitas
vezes levaram um expert à escola em um encontro pedagógico e esse especialista
explicou - usando transparências, fitas cassetes ou apresentações de Power
point, conforme a época e os recursos disponíveis - o perigo de a escola ficar
ultrapassada por não oferecer ao aluno as novas tecnologias e o conhecimento de
como usá-las. Fizeram também muitos encontros fora da escola, em diversos
lugares, desde salas improvisadas, Diretorias de Ensino até - essa vi só uma
vez - em um clube da cidade onde havia uma enorme quadra poliesportiva coberta.
Na quadra cabiam todos os professores de todas as escolas estaduais da cidade,
colocaram um telão e passaram imagens de palestras dadas por especialistas que
explanavam sobre o perigo de a escola ficar ultrapassada por não oferecer ao
aluno as novas tecnologias e o conhecimento de como usá-las. Nesse dia tinha,
do lado de fora da quadra, uma área com mais de uma banquinha vendendo livros e
outros materiais pedagógicos e, o melhor de tudo segundo alguns: na entrada
cada professor recebia um lanchinho bem embalado com direito a um docinho como
sobremesa.
Como disse no começo do
texto, sou uma professora velha e já dei aulas em muitas escolas. Mudei de
escola, de cidade e até de Estado, mas o discurso não mudou em nada. A escola
corre o risco de ficar ultrapassada por não oferecer ao aluno as novas
tecnologias e o conhecimento de como usá-las ou, traduzindo para o discurso
comum: Precisamos dar aulas diferentes! O que, parece, passa obrigatoriamente
por usar o aparelho de som, o carrinho móvel com a televisão e o vídeo cassete,
a sala de vídeo e a sala de informática.
Acontece que, agora, o
nosso aluno, mesmo o da escola pública, tem um computador na mão. Será que isso
não pode significar que ele já não precisa tanto assim da sala de vídeo e da
sala de informática? O problema, me parece, é que a escola sempre tem medo de
ficar ultrapassada e, por isso, fecha os olhos e não percebe que sempre esteve
ultrapassada. Escola é, na sua essência, um órgão ultrapassado. Sempre chegamos
atrasados e essa é a nossa definição.
Se o aluno tem um
computador de última geração na mão, temos que ter um bom motivo para levá-lo a
uma sala com computadores em número insuficiente para sua turma e ultrapassados
em relação ao seu. Se o aluno tem um computador na mão no qual pode ver vídeos,
ouvir música e até ver filmes, temos que ter um bom motivo para levá-lo à sala
de vídeo e passar um filme ao qual ele não vai prestar a mínima atenção porque
aproveitará o “escurinho” para conversar, cochilar, trocar mensagens com os
colegas de dentro e de fora da escola usando o seu computador de mão.
Claro que passar imagens,
comentar, debater, questionar, ensinar sobre elas no momento em que estão sendo
passadas é uma maneira muito boa de dar uma aula usando “as novas tecnologias”.
Não duvido disso e não duvido que muitos professores o façam, eu mesma já fiz
isso diversas vezes. Mas se for para que eles pesquisem um tema no Google,
digitem um trabalho, vejam um filme ou vídeo e façam a respeito uma atividade
posterior eu, Divina, não consigo ver necessidade da sala de vídeo ou da sala
de informática. Posso muito bem pedir que façam essas coisas em casa, ou onde
quiserem usando o computador que têm na mão. Ou que venham à escola no
contraturno, ou seja, fora do horário de aula e, com um professor orientador,
faça suas pesquisas. Claro que, para isso, teria que ter o professor orientador
na sala de informática, da mesma forma que na biblioteca tem que ter um
professor bibliotecário. Para mim, isso seria uma necessidade, principalmente
nas escolas de periferia onde nem todos os alunos têm um computador de mão
capaz de ajudá-los.
Esse ano, com meus
alunos do Terceiro Ano do Ensino Médio e meus alunos do Nono Ano, trabalhei
mais de um tema com atividades que exigiam pesquisa usando as “novas tecnologias”
e não os levei à sala de vídeo ou à sala de informática, nem uma vez. Pedi que
encontrassem e ouvissem uma determinada música, passei algumas questões
relacionadas à música e várias dessas questões exigiam pesquisa que podiam
fazer no Google e outros sites. Pedi que digitassem trabalhos feitos por eles e
me enviassem por e-mail para um livro que publicarão no final do ano. Agora,
estou pedindo que encontrem na internet a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e pesquisem sobre ela, vou querer a leitura e estudo do texto, vou
recomendar vídeos e vou trabalhar o tema como produção de texto, a ser
posteriormente digitado. E não estou planejando levá-los à sala de vídeo ou à
sala de informática para isso.
Entendo que para alguns
professores, algumas disciplinas e alguns conteúdos, faz todo o sentido usar
essas salas, é também para deixar o espaço para eles que opto por não os usar
desnecessariamente. Entendo que todo professor tem o direito de incluir esse
recurso no seu planejamento e em suas aulas, entendo e defendo com veemência o
direito de cada professor planejar e ministrar suas aulas conforme melhor lhe
parecer. Da mesma forma, entendo que muitos professores usam essas salas mais
por terem sido muitos cobrados para que fizessem isso do que por necessidade
delas. Dentro da sua disciplina, do seu método pedagógico e do seu
planejamento, tenho certeza de que cada professor é soberano e eu, que sou uma
igual e nunca superior, não tenho o desejo nem o direito de dizer que esse
professor está errado e muito menos de questioná-lo ou duvidar de sua
capacidade e de seu profissionalismo. Não é e não tem que ser minha função!
Fico muito “puta da
vida” quando vejo ou ouço aqueles “especialistas em pedagogia” que, se já
entraram em uma sala de aula como professores foi há séculos, fazerem discursos
e até dar os chamados “cursos de capacitação” responsabilizando, cobrando e
criticando os professores, de forma generalizada. Os discursos tão comuns, às
vezes de forma indireta e às vezes muito explícitos, de que nós, professores,
somos todos incompetentes, somos os responsáveis por toda e qualquer
deficiência na educação e somos culpados por todos os índices negativos, que
insistem em aparecer apesar da “maquiagem” que eles tentam fazer. Essas acusações
persistente são o que, de dentro da minha profissão, realmente me deixam
furiosa. Então, não seria eu a cometer essa injustiça contra meus colegas.
O que quero dizer é
apenas que eu posso, e qualquer professor pode, se quiser, não usar as salas de
vídeo e a sala de informática e, mesmo assim, usar as “novas tecnologias” que,
afinal, são apenas ferramentas - como o giz, a lousa, o livro, a caneta - e
que, diga-se de passagem, não são tão “novas tecnologias” assim!
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